Ficha técnica
O Colecionador
Autor: Sergio Toppi (roteiro e arte)
Tradução: Maria Clara Carneiro
Letrista: Otamix Produções Artísticas
Preço: R$ 96,00
Editora: Figura
Publicação: Maio / 2021
Número de páginas: 268
Formato: 21,5 x 29 cm, Capa dura, preto e branco
Gênero: Aventura
Sinopse: Um misterioso milionário percorre o mundo coletando estranhos objetos. Relíquias mágicas de diferentes partes do mundo, representantes de momentos únicos e inigualáveis, valiosos somente aos olhos treinados de um colecionador. E ele sempre consegue o que quer.
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Em um mundo ideal teria conhecido a obra de Sergio Toppi décadas atrás e talvez pudesse tê-lo reconhecido nos corredores apertados ou nos gramados da Casa do Conde, no longínquo FIQ de 2003. Quando o quadrinista italiano foi um dos convidados e também participou da mostra Produção Italiana. Entretanto, assim como eu, o mercado brasileiro também precisava amadurecer e expandir o seu horizonte de leitura. O que nos leva ao ano de 2021, uma campanha no Catarse, muita curiosidade, a indicação do Sidney Gusman e pronto: meu primeiro encontro com o quadrinista italiano já estava marcado: O Colecionador.
Mas também com um título desses, acredito que qualquer pessoa que coleciona algo, seria tentado a ler a HQ. Além disso, no meu caso, fiquei interessado em como o autor iria trabalhar o tema do colecionismo no quadrinho. E bem, considero que não errei ao começar a leitura da bibliografia de Toppi por aqui.
Tendo sido publicado pela Editora Figura – Sharaz-de – Contos de As Mil e Uma Noites (2016-2017) e Takka (2019) – e pela Editora Skript – Fábulas do Velho Mundo (2021) -, é possível dizer que o quadrinista italiano ainda está sendo descoberto pelos leitores brasileiros. Tanto que a própria Figura soltou a não muito tempo, a notícia de que iria publicar a biblioteca Toppi, enfim trazendo outras obras do autor. Por isso, creio que uma pequena apresentação seja necessária, por isso deixe-me dividir algumas informações que coletei.
Quem é Sergio Toppi
Nascido em Milão, em 1932, Toppi é um dos desenhistas mais cultuados em todo o mundo. Com nomes como Frank Miller, Walt Simonson, Bill Sienkiewicz, Denys Cowan, R.M. Guera, Francesco Francavilla, Dave McKean e Sean Murphy, já tendo declarado publicamente o seu encanto pelo traço do milanês.
Com todos esses nomes o idolatrando, fica a pergunta do por que o quadrinista não estar na boca miúda do povo, como tantos outros grandes. A resposta para isso está em sua própria trajetória dentro da nona arte.
Autodidata, Toppi trabalhou por muitos anos como ilustrador para o mercado de publicidade e animação. Começando no ramo dos quadrinhos somente na década de 60, onde colaborou com os roteiristas Carlo Triberti, em Il mago Zurli, e com o roteirista Mino Milani em La Vera Storia di Pietro Micca.
Na década de setenta, três grandes eventos irão solidificar tanto seu traço, quanto a sua carreira. Em 1974 é contratado pelo grande editor Sergio Bonelli para ilustrar Herman Lehmann – L’indiano bianco, obra na qual reinventa o seu traço. Logo após, passa a trabalhar no semanário Il Messaggero dei Ragazzi, onde consolida o seu estilo gráfico. Já em 1975, ganha o prêmio Yellow Kid no 11º Festival Internacional de Quadrinhos de Lucca.
Já na década de oitenta, peregrina por diferentes revistas de HQs da Europa como l’Eternauta, Corto Maltese, Comic Art e Magic Boy. Já na década de noventa, volta a colaborar com Sergio Bonelli nas revistas Ken Parker Magazine, Martin Mystère e Julia. Além de ilustrar duas histórias de Nick Raider. Já em 1997, passa a trabalhar com a editora francesa Mosquito, pela qual irá republicar a maior parte de suas obras.
Chegou a trabalhar para a Marvel em 2006, criando capas para a minissérie 1602 – Novo mundo com enredo de Neil Gaiman e roteiro de Greg Pak. Enquanto que em 2012, o festival CICAF (China International Cartoon & Animation Festival) celebra o seu trabalho com uma grande exposição e com o prêmio Golden Monkey King pela HQ Un dieu mineur.
É possível dizer que Toppi contribuiu com todas as grandes revistas de HQs da Europa, se tornando um expoente no velho continente e fora dele. Entretanto, sua bibliografia se dispersa em diferentes projetos, sendo sua marca a quase total ausência de personagens recorrentes. Com exceção de um: o colecionador.
O Colecionador ou a viagem enquanto encontro
Il collezionista ou O Colecionador foi originalmente publicado em 1982 de forma seriada na revista L’Eternauta. Ganhando, dois anos depois, o álbum Il Calumet di Pietra Rossa, de 1984, seguido de o L’obelisco della terra di Punt, em 1985, e La Lacrima di Timur Leng, de 1986. Em 2004, a editora Mosquito encomendou a Toppi uma última aventura do personagem: La collana di Padmasumbawa.
A edição que aporta em terras brasileiras, pela Editora Figura, compila todas às suas histórias (cinco, no total) e conta com prefácio do professor Alexandre Linck, que vocês devem conhecer do canal Quadrinhos na sarjeta, além de uma pequena biografia do desenhista.
Misto de cowboy e dândi, é possível ver no personagem ecos de outro famoso italiano: Corto Maltese. Do mesmo jeito que nas aventuras do marinheiro, aqui também encontramos os mesmos elementos que o tornaram tão famoso: aventuras, uma narrativa mais lenta, ora com elementos fantásticos, mas fortemente calcada pelo real. Similarmente, é ainda possível, traçar outros paralelos entre os personagens, sendo ambos, garbosos viajantes bons de mira e de briga.
Contudo, se as criações dos italianos Pratt e Toppi podem ser sempre encontradas perambulando por aí, o motivo é atenderem a própria necessidade de seus criadores: o encontro com o outro.
Há uma busca dos autores de se abrir a outras culturas, de mergulhar de tal forma por paisagens, cheiros, sabores, que é possível sentir através das páginas das HQs essa intencionalidade. Este aspecto é ainda mais forte na arte de Toppi, onde a acurácia na retratação de diferentes povos beira o naturalismo.
Não à toa, o próprio Linck, no prefácio da HQ, define as histórias d’O Colecionador como “aventuras antropológicas”. O que é bem verdade, já que em cada uma delas entramos em contato não só com diversas etnias, mas também com a própria psique do colecionador.
Um pequeno tratado sobre o colecionismo
Há um ponto bastante interessante no título da obra de Toppi e acredito que a escolha do sufixo “o” não tenha sido acidental. É facilmente perceptível a forma como o quadrinista italiano utiliza características, maneirismos e elementos em comum a todos que colecionam para criar a sua narrativa. Desta forma é possível entender a HQ como um pequeno tratado acerca do colecionismo. E é possível já ver logo na primeira aventura do personagem.
Em “O Calumet de pedra vermelha”, somos apresentados ao Colecionador. Surpreendentemente, mesmo sendo abordado por um jornalista, nenhuma informação é dada sobre ele. Não sabemos seu nome, sua nacionalidade ou idade, mas como ele mesmo diz: “um cheque com a assinatura ‘o colecionador’ é honrado de Seattle a Hong Kong”.
Para além do mistério, o que mais chama atenção aqui é a mensagem de Toppi onde o que importa realmente não é o colecionador, a pessoa, mas sim a sua coleção. Ao passo que, o que vemos são os motivos pelos quais ele coleciona, o seu objeto-tema e como a sua vida é devotada à coleta e guarda destes itens.
Sua riqueza, suas viagens, seus contatos, seus amigos, sua vida, são para ou foram produzidos por sua busca inesgotável. Um trabalho árduo, porém “colecionar em certo nível é um empenho profissional […] o sucesso se torna indispensável”. Tão vital que seu mote é: “eu sempre consigo o que quero”. Uma sanha e sonho de todos aqueles que colecionam não é mesmo?
O Colecionador – de uma metalinguagem
Mas quais objetos podem despertar tanta paixão em uma pessoa? Bem, para o Colecionador são itens “vívidos”, protagonistas de histórias que ele descobre em suas pesquisas. Peças que, uma vez coletadas, serão guardadas e não mais exibidas.
Todavia, quais itens de uma coleção não possuem sua própria crônica? Pensem nas aventuras do protagonista do volume como uma metalinguagem, pois, apesar dos artefatos já possuírem uma história prévia, a própria jornada para possuí-los já lhes dão esse caráter fantástico. Algo que todo colecionador sente e pode provar para você em quinze minutos de conversa. Tal como, as agruras para se encontrar um item, “O obelisco da terra de Punt”, a tristeza de um item faltante, como em “A lágrima de Timur Leng”, a dor da perda de uma peça roubada, “O cetro de Muiredeagh”, ou a vontade necessária para enfim possuir o objeto desejado, “O colar de Padmasumbawa”.
Em síntese, as aventuras do protagonista podem ser lidas como alegorias de diferentes momentos na vida de toda pessoa envolvida com o colecionismo. E assim sendo, os contos de Toppi expressam, em última instância, como o ato de colecionar é também coletar e vivenciar histórias. Sejam elas através dos itens colecionados, seja através da jornada para obtê-los. E isso tudo envolto por aventuras ímpares e fascinantes.
Conclusão
Não poderia terminar sem falar algo sobre a arte de Toppi. Seu traço e o domínio do layout das páginas são estonteantes, senão, único. Além disso, a forma como as onomatopeias são utilizadas é um show à parte e demonstra como o recurso nada tem de infantil, como algumas pessoas podem pensar.
Brincando com os enquadramentos, que alternam entre dramáticos close-ups e belíssimos planos abertos, o quadrinista italiano sabe como poucos criar uma narrativa complexa, dinâmica e dramática. O resultado de todos esses elementos combinados é um quadrinho, e um autor, que se agiganta dentro da nona arte. E para exemplificar isso melhor, fiquem com as palavras do jornalista e crítico inglês Paul Gravett:
As inovações de Toppi incluíram a liberação de seus quadrinhos de sua típica estrutura sequencial regulada, da necessidade de organizar uma página com bordas, calhas e grades. Em vez disso, ele enfatiza a imagem maior, a interação total e geral dos painéis, produzindo um impacto e contraste aumentados e o espaço e tempo para apreciação e contemplação. Ele, de alguma forma parece esculpir formas, rostos e figuras a partir de uma deslumbrante coreografia de marcas, linhas e hachuras de diferentes pesos e acabamentos, com a quantidade certa de detalhes primorosamente compostos e colocados entre pretos sólidos e espaços brancos abertos. (tradução feita através do Google tradutor / você pode ver o texto original aqui)
Sendo O Colecionador um belo exemplo de toda a força de Toppi descrita por Gravett. Desta forma, fica aqui a minha recomendação enquanto abro espaço nas prateleiras para mais quadrinhos do italiano.
Nota: 5 de 5