Ficha técnica
Top 10
Autores: Alan Moore (roteiro), Gene Ha (desenho), Zander Cannon (arte e arte-final), Richard Friend (arte-final), Andrew Currie (arte-final), Wildstorm Fx (cores), Alex Sinclair – ‘Sinc’ (cores), Benedict Dimagmaliw (cores), Daniel Dan Brown (cores), Art Lyon (cores)
Preço: R$ 204,90
Editora: Panini
Publicação: Novembro / 2021
Número de páginas: 584
Tradução: Leandro Luigi Del Manto, Rogério Saladino
Letras: Paulo Cesar Tavares
Formato: (20,5 x 27,5 cm) Colorido/Capa dura
Gênero: Super-heróis
Sinopse: Em Neópolis, a cidade onde todos têm superpoderes, os policiais do 10º distrito são a lei. Conheça as suas histórias, conheça a história dos cidadãos desta super pólis.
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Quando se fala em Alan Moore, logo pensamos em Watchmen e V de Vingança. Contudo, em seus longos e frutíferos anos como quadrinista, não faltam boas HQs. E a maxissérie Top 10 pode até não estar no top 3 (desculpe, o trocadilho) de uma ou outra lista por aí, mas é uma daquelas obras menores arrebatadoras.
E digo “menor” no sentido de passar despercebida pelos menos aficionados, pois a obra ganhou os seguintes Eisners:
- Melhor escritor (2000 / 2001 / 2006)
- Melhor letrista (2000 / 2001 / 2002 / 2006)
- Melhor nova série (2000)
- Melhor série continuada (2001)
- Melhor novo álbum gráfico (2006)
Chegando agora no formato definitivo, a edição conta com todas as histórias escritas por Moore. São doze edições integrais de Top 10, as cinco edições do spin-off Smax, a edição especial America’s Best Comics Special 1 e o prelúdio da série Top 10: The Forty-Niners. Um pequeno colosso com mais de quinhentas páginas que guarda inúmeras surpresas em cada um dos seus quadros.
Top 10 e seus easter eggs
Elevando à enésima potência a ideia de como uma extensa quantidade de informações pode ser incluída em cada quadro, Moore salpica referências para todos os lados. A história é repleta de menções a outros quadrinhos, literatura, filmes e cultura pop em geral.
Alguns desses easter eggs estão à vista, outros já estão mais escondidos e requerem um olhar mais cuidadoso. Isso quando não estão misturados e se referem a dois ou mais personagens da cultura pop. Sem falar de uma edição inteira focada na mitologia nórdica e outra onde é possível ver vários deuses greco-romanos.
Não é à toa que as histórias de Top 10 são um ótimo exemplo de como Moore é uma enciclopédia ambulante. Porém, nada disso seria possível sem o trabalho primoroso dos desenhistas Gene Ha e Zander Cannon. Ambos tornam a cidade de Neópolis extremamente vibrante, alucinante e ao mesmo tempo crível. E, apesar de todos aqueles super-seres juntos, roupas coloridas, monstros e robôs, há uma sensação de normalidade, quase de tédio, como se estivéssemos vendo uma metrópole contemporânea.
E é aí que os easter eggs brilham. Funcionando ora como prêmios, para os olhares mais atentos, ora como freios, de forma a desacelerar a leitura, eles também servem para deixar tudo mais verossímil, conforme vão acrescentando camadas de densidade à paisagem urbana. Ver, por exemplo, o Homem-Elástico e sua família bisbilhotando um acidente ou os Desafiadores do Desconhecido saindo de uma estação de viagem interdimensional, é algo ao mesmo tempo fantástico e banal. Daí a genialidade do uso do recurso.
Mas e sobre o que é Top 10?
Saída da extinta linha de quadrinhos America’s Best Comics da Wildstorm (posteriormente vendida para a DC Comics), Top 10 pode ser encarada como uma história de equipe de super-heróis, mas sem todos os clichês.
As semelhanças com histórias da Liga da Justiça, Vingadores, Jovens Titãs, X-men ou qualquer outra equipe estão presentes na forma. Há uma equipe de heróis, reunidos em torno de um bem comum, lutando para resolver diferentes missões. Também há aquele herói turrão, a novata que busca aprender a como lidar com os medalhões e todo esse mundo novo, o piadista, os enlaces amorosos, as brigas internas. A diferença está justamente na fórmula.
Utilizando os moldes de uma série policial, Moore consegue balancear o tempo “em tela” de cada personagem, fazendo com que possamos nos conectar não só com a dupla de protagonistas, mas com praticamente toda a equipe principal do distrito. Mesmo quando um novo personagem é apresentado, já mais para o final da maxissérie, o bardo de Northampton consegue dar a ele profundidade ao colocá-lo em cenas emocionantes, engraçadas e de tensão.
Os personagens de Top 10:
- Robyn Slinger – Toybox: a novata. Filha de um antigo policial do distrito. Ela é uma super-heroína científica que carrega uma caixa cheia de brinquedos que ganham vida.
- Jeff Smax – Ser extradimensional com superforça e invulnerabilidade, além de poder projetar uma mão energética que sai de seu peito.
- Jack Phantom – Ela tem a capacidade de se tornar imaterial.
- John Corbeau – Rei Pavão: Superforça, agilidade sobrehumana e também poder falar com objetos inanimados.
- Jackson – Sinestesia: Ela é sinesteta, ou seja, um estímulo sensorial causa reações em outro. Jackson pode ver sons ou ouvir cheiros. Com isso, ela é capaz de ler pessoas e objetos, além de ter poderes precognitivos.
- Irma Geddon – Dona de uma armadura fortemente armada e que dispõe de dispositivos termonucleares.
- Sung Li – Garota Um: Uma pessoa sintética, com poderes acrobáticos, velocidade sobrehumana e capaz de reorganizar os pigmentos de sua pele.
- Diabo da poeira: Não possui nenhum poder aparente. Ele empunha um par de revólveres superpoderosos.
- Pete Cheney – Shock-headed: Capaz de gerar eletricidade e dispará-la através dos dedos.
- Sargento Caesar: Um cão inteligente e falante. Ele possui uma armadura que o permite andar ereto e que está equipada com armas elétricas.
- Tenente Peregrina: Possui a habilidade de voo, apesar de não sabermos se é um de seus poderes ou de seu traje.
- Capitão Traynor – Jetman: Não possui superpoderes, porém é um ás da aviação que lutou contra os nazistas na 2ª Guerra Mundial.
Contando com duas subtramas principais – o assassinato de prostitutas decapitadas e o assassinato de um traficante de drogas – as edições possuíam um caráter episódico. Isso, como já dito anteriormente, facilita com que cada um dos personagens possa brilhar enquanto lida com violência doméstica, infestação de pragas urbanas, o filho problemático de um antigo astro dos anos 50 ou o homicídio do deus da beleza nórdico.
Assim como com os easter eggs e com a caracterização de Neópolis, o charme das histórias está em sua densidade. O trabalho de Moore na personalização de cada um dos personagens é bastante meticuloso e abre espaço para discussões sobre relacionamentos interespécies, xenofobia, homossexualidade, religião e abuso de menores.
Tanto que são nesses momentos mais humanos que Top 10 se sobressai e um simples acidente de trânsito se torna em uma bonita reflexão sobre o que é a vida, a dor da perda e os momentos felizes que nos marcam. Com efeito, um dos diálogos da história viria a se tornar referência para a primeira temporada da série True Detective de Nic Pizzolatto.
O spin-off Smax ou Alan Moore narra uma aventura de D&D
Se em Top 10 vemos um Moore mais preocupado em construir uma narrativa mais pé-no-chão, no primeiro spin-off da maxissérie, o que vemos é o roteirista super à vontade em um enredo cômico. Como resultado, o que temos é uma história de desconstrução do irascível policial, enquanto o acompanhamos em uma aventura à la “Senhor dos Anéis”.
Da mesma forma que na série principal, Smax também é carregada de easter eggs, todavia, as referências aos super-heróis e à cultura pop diminuem e dão lugar a personagens da literatura, fantasia e outras histórias de espada e feitiçaria. Eventualmente, vemos menções a Harry Potter, Sandman, Alice no País das Maravilhas, ao filme “O Sétimo Selo” e até mesmo o hilário Groo dá as caras em um dos quadros.
Um ponto a se dizer é que a arte de Zander Cannon é bastante cartunesca em alguns momentos e os seus cenários, apesar de serem densamente povoados, não possuem a saturação vista em “Top 10”. Desta forma, há mais espaço para captar as aparições especiais e também para fazer um interessante contraponto à maxissérie.
Tudo em “Smax” é feito para se opor ao tom dado por Moore a sua série policial. Algo que é constantemente lembrado pelo próprio gigante azul, Smax. Em várias de suas falas, ele insiste em falar de como a sua terra é atrasada, de hábitos e costumes estranhos e que nada se parece com Neópolis. Ao passo que é possível perceber diferentes camadas de desconstrução do tom do personagem e da expectativa de quem está lendo. Afinal de contas, é uma surpresa e tanto descobrir as origens do detetive indestrutível.
Um ponto em comum entre as histórias é a forma como Toybox serve, mais uma vez, de guia à medida que entramos no reino encantado que é a terra de Smax. O que gera ótimas cenas de choque cultural conforme a policial vai conhecendo os hábitos alimentares, de moradia e outros pormenores dos habitantes da Terra 137. Porém, é com ela que Moore faz com que o roteiro brilhe, fazendo com que essa Terra-média ganhe novos contornos científicos.
Outro fato a se destacar são os novos personagens apresentados: Rexa, irmã de Smax, e Aldric, o elfo, que juntos, a um trio de anões, compõem a comitiva encarregada de matar o grande dragão primevo. E, similarmente ao que ocorre em Top 10, o roteiro faz com que cada um dos personagens tenha destaque mesmo que por um momento ou outro, garantindo que até mesmo os figurantes arranquem uma gargalhada de quem está lendo.
Top 10: The Forty-Niners – Vampiros, o futuro e o passado de Neópolis
Fechando a edição definitiva, temos a edição especial “Os Companheiros Mortos”, publicada em “America’s Best Comics 64-Page Giant #1“, e a minissérie “Top 10: The Forty-Niners“, que, apesar de trazerem Neópolis em momentos distintos, têm como ponto em comum as gangues de vampiros que aterrorizam a cidade.
Em “Os Companheiros Mortos”, acompanhamos uma batida dos policiais da Top 10 para prender membros de duas gangues rivais. E mesmo que de forma rápida, a HQ nos ajuda a nos inteirar dos negócios e da periculosidade dos sanguessugas da metrópole. De tal forma que a história serve mais como preâmbulo da minissérie que fecha o volume. Contudo, mesmo que em suas pouco mais de seis páginas, ainda é possível encontrar easter eggs da revista “Creepy” e outras referências a HQs e filmes de terror e de vampiros.
Agora, já em “Top 10: The Forty-Niners“, o que encontramos é uma homenagem aos quadrinhos, desenhos e filmes das décadas de 30 a 50 do século XX. Contando os primórdios de Neópolis, vemos circular por suas ruas personagens como o marinheiro Brutus, o Arqueiro Verde e Sandman da época de ouro, o Yellow Kid, o Fantasma, Adam Strange, Dick Tracy, Tom Strong; assim como menções ao quadrinista Carmine Infantino, ao herói Rocketeer, a Félix – o Gato, Flash Gordon e muito mais.
Tendo como pano de fundo o cenário pós-Segunda Guerra Mundial, Moore parte da premissa: o que fazer com soldados treinados, assassinos altamente habilidosos, cientistas e médicos com passados moralmente questionáveis e com poucas habilidades sociais? Isso, é claro, aplicado ao universo onde existem toda uma miríade de super-heróis, robôs, vampiros e seres superpoderosos.
A cidade maravilhosa e seus problemas
A resposta a essa dúvida é Neópolis, onde os Aliados se encarregaram de realocar todos, de forma a não traumatizar os cidadãos suburbanos comuns. E quando digo todos, isso inclui vilões e cientistas nazistas, que passam a atuar como arquitetos e designers da cidade. É algo semelhante ao que vimos aqui quando os EUA empregaram e acolheram ex-integrantes do regime nazista em seus projetos científicos.
Vemos toda essa efervescência através dos olhos de Steven “Jetlad” Traynor, o jovem piloto que crescerá para se tornar o Capitão Traynor em Top 10, e Leni “Bruxa dos Céus” Muller, uma super-heroína alemã que lutou pelos Aliados. E mesmo sendo um prelúdio, “Top 10: The forty-niners” pode ser lida de forma independente. As aparições de personagens mais jovens da maxissérie estão limitadas a Gromolko (o cientista nazista envolvido com tráfico de drogas) e o pai da policial Toybox, Sam Slinger.
Outra coisa é que a minissérie também não se prende a prenúncios sem fim e, mesmo tendo Traynor como um de seus protagonistas, ela não é uma história de formação. Tanto que, ao final da HQ, contrariando muitas expectativas, Traynor ainda nem entrou para a polícia. Seu caminho é outro e muito mais intimista, e vai nos mostrar o jovem às voltas com o amor e todas as inseguranças que isso implica.
No entanto, a história mostra sim a formação da força policial de Neópolis através de Muller. E é com ela que veremos os perigos que rondam a cidade: as gangues de vampiros e os delírios nazistas ainda latentes em certos cidadãos reformados.
Surpreendentemente, essas duas tramas se entrelaçarão mais ao final da história, quando Moore levanta a questão da discriminação, já vista em Top 10, contra os seres autômatos que vivem na metrópole.
Da perda da inocência
No que se refere ao roteirista inglês e à problemática dos super-heróis, é possível dizer que aqui o vemos, mais uma vez, tratando da questão da perda da inocência desses seres. Isso é retratado tanto em uma das falas dos personagens, como também é possível ver um paralelo entre as cores utilizadas e os temas abordados na história.
Em um dos quadros, vemos Wulf, um dos Tubarões Voadores e interesse amoroso de Traynor, dizer:
“Sabe, de certa forma, era melhor durante a guerra. Como naquele cinejornal. Tudo era preto ou branco. Naquelas lutas, não tínhamos tempo para pensar.”
Essa frase é um dos vários momentos na história em que podemos observar um mundo em transição. Um no qual todos aqueles que foram realocados para aquele local estão perdidos, navegando em mares desconhecidos e buscando construir um novo modo de vida. Um mundo onde problemas mais modernos, como crime organizado e racismo, não podem ser resolvidos de forma simplória como esses velhos super-heróis estavam acostumados na guerra contra os nazistas. Lembrando que esse movimento também ocorreu com as histórias mais simples dos quadrinhos da época.
Em conformidade com esse espírito estão as cores de Art Lyon. Trazendo uma suave paleta que não é preto e branco, mas que também não é uma explosão de cores, o colorista consegue transmitir a sensação de um despertar, uma alvorada. Aquele momento em que as cores do dia ainda não estão muito claras, mas já podemos distingui-las. É um pouco do que também vemos ao final da minissérie.
Conclusão
Ufa, acho que talvez este seja um dos textos mais longos do blog, mas quem sou eu para tentar destrinchar uma parcela das informações e achar que seria uma contenda rápida.
Para terminar, Moore é conhecido por suas histórias complexas e extremamente planejadas, e Top 10 não é exceção. Mesmo que não estejamos diante de um grau de complexidade como visto em Watchmen ou Do Inferno, as histórias criadas para o selo America’s Best Comics possuem uma densidade informacional ímpar.
Trabalhando habilmente o uso de easter eggs, o roteirista consegue aplicar sua filosofia de que somente nos quadrinhos, é possível inserir uma enorme quantidade de informação em cada painel. Dessa forma, cada página possui uma infinidade de referências que servem como chamariz aos olhos mais experientes, sem, no entanto, estragar a experiência de leitura de outras pessoas.
Ainda assim, todo esse trabalho não seria possível sem o trabalho dos desenhistas Gene Ha e Zander Cannon, assim como dos arte-finalistas e coloristas, que criaram um mundo futurista convincente, repleto de detalhes, com personagens bem desenhados e cenários incríveis.
Por fim, deixo aqui para aqueles que adoram uma caça ao tesouro dois links com todos (ou quase todos) os easter eggs. Os da maxissérie podem ser vistos aqui e os da minissérie aqui.
Então, por hoje é só, pessoal. Depois me digam o que acham de Top 10.
Nota: 4