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Críticas de segunda e Opiniões de quinta sobre Quadrinhos

Por Thiago de Oliveira

Santelmo enfeitiçado review

Santelmo Enfeitiçado

Minas Gerais. Final do século XIX. Conheça a história da criação de Belo Horizonte e os diferentes Brasis que cortam o nosso país.

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Ficha técnica

Santelmo enfeitiçado capa
Capa de: Piero Bagnariol Francesco Kotsubo

Santelmo Enfeitiçado
Autores: Fabiano Azevedo (roteiro e layout), Piero Bagnariol (desenhos) e Erick Azevedo (composição de páginas e esboços) e Francesco Kotsubo (desenhista auxiliar)
Preço: R$ 40,00
Editora: Independente
Publicação: Agosto/2022
Número de páginas: 112
Formato: (21 x 28 cm), Preto e branco/Lombada quadrada
Gênero: Aventura
Sinopse: Minas Gerais. Final do século XIX. Com a criação de uma nova capital para o Estado, o fim de uma era se aproxima. Mas antes disso, Santelmo, um velho mágico e curandeiro, deve cumprir a sua jornada.

***

O quadrinho brasileiro é vasto e o que não falta são temas para os nossos quadrinistas explorarem. Contudo, nos últimos anos, temos visto um olhar mais atento a tramas que nos coloquem para dialogar com o nosso passado. O que por sinal, é ótimo, afinal, se há algo que temos problema é com a nossa memória. Por isso, obras como Angola Janga, de Marcelo D’salete, Ajuricaba, de Ademar Vieira ou Indivisível, de Marília Marz são primorosas. E já indico que passo a incluir Santelmo Enfeitiçado nesse hall.

Com um enredo focado no período final do século XIX e se passando nas terras de Minas Gerais, a HQ escrita por Fabiano Azevedo nos leva a dialogar com um período bastante específico: a inauguração da nova capital do Estado, Belo Horizonte, e todas as mudanças ocasionadas por conta disso. Porém, o faz de uma maneira bastante peculiar.

Aqui, não é somente uma HQ historiográfica, mas algo mais profundo, por assim dizer. É uma jornada, um acerto de contas e também, porque não, um romance de formação. Ok, o gênero literário está mais focado na investigação do processo de desenvolvimento físico, moral, psicológico, estético, social ou político de uma personagem. No entanto, é difícil não pensar que é exatamente o que vimos ao final da trama. Sendo a personagem, no caso, o Estado de Minas Gerais.

Um lembrete de como é, através da cultura popular e da contribuição dos povos originários, dos quilombos e da população negra, que veio a surgir toda a riqueza (e não estou falando somente do ouro) de nosso Estado. Isso, sem esconder as inúmeras tensões e contradições existentes em nossa história.

Da jornada 

Santelmo Enfeitiçado começa no interior de Minas, em Baú – na comarca de Serro Frio. E é um primeiro dia de primavera, um dia de bons presságios, que somos apresentados a Santelmo, seu cão Muleto, sua gata e sua pacata vida em um pequeno sítio. Mas toda essa calmaria é bruscamente interrompida após o idoso encontrar uma maldição direcionada a ele, um feitiço enfraquecedor que o expõe a todas as mazelas possíveis. 

Arte de: Piero Bagnariol Francesco Kotsubo

Assim, amaldiçoado e supostamente enfraquecido, que Santelmo deve partir. Porém, ele é um homem versado nas artes ocultas, um sábio, um mágico e benzedeiro. Sua carta no tarot é o Eremita. Aliás, a própria figura do personagem evoca a iconografia da carta e seus significados; ele também carrega um longo bastão e Muleto, seu cão, segue a frente como sua lanterna. Não à toa, que um dos momentos mais sombrios e perigosos que o personagem enfrenta é quando Muleto não está lhe fazendo companhia. 

Cogitações à parte, o que está à frente de Santelmo é uma jornada na qual ele deve buscar respostas, mas também servir como testemunha ocular das mudanças ocorridas fora de seu sítio encantado. E não digo encantado sem razão, pois no início da HQ toda a paisagem remete a um local idílico, fora do tempo, por assim dizer. Tanto que é necessário que algo externo venha e coloque a história para girar: a maldição.

É possível pensar em várias dicotomias que atravessam a obra. Algumas mais sutis, como essa do início do quadrinho, e outras mais escancaradas. Entretanto, talvez a mais importante seja a oposição entre um certo Brasil profundo X Brasil oficial. Já que não são poucos os momentos que o protagonista se vê confrontado por estas vivências em seu caminho.

Dois Brasis

Talvez, para evitarmos maiores problemas, seja necessário definir o que entendemos por Brasil profundo. A ideia aqui é utilizada como o Brasil real, singular e vívido, é significativamente diferente do país imaginado pelo Estado e segmentos dominantes da sociedade brasileira. Lembrando que são múltiplas as formas que este Brasil não-oficial se expressa, seja no interior do país ou em suas capitais.

Para saber um pouco mais sobre essa distinção, recomendo o bate papo entre os pensadores Silvio Almeida e Luis Simas, que você pode ver aqui.

Voltando a HQ, as mudanças ocorridas ao final do século XIX em Minas Gerais e retratadas aqui, formam um painel onde é possível visualizar essa assimetria. E Santelmo Enfeitiçado possui passagens onde tornam essa bipartição ainda mais clara.

Seja no tratamento dado à própria forma, cada vez mais predatória do uso dos recursos naturais, com a presença de empresas inglesas de mineração. Em contraponto com o objetivo da viagem de Santelmo: a coleta de uma rara flor capaz de cortar o mau agouro. Assim como nas formas que os povos originários e, principalmente a população negra, se articularam para enfrentar o racismo estrutural do Estado brasileiro.

Contudo há vários momentos na trama onde Santelmo irá atuar como observador destas diferentes visões do Brasil. E destaco a sequência da viagem de trem, onde o mágico, junto com o jornalista e escritor Olavo Bilac, entram em conflito com um latifundiário e um padre.

A capital e seu projeto

Mas é na chegada à capital – Cidade de Minas ou Belo Horizonte – que o choque entre esses dois Brasis ganha ainda mais luz e relevo.  

Uma das primeiras capitais projetadas do país, a cidade foi dividida em três zonas: 

  • a área central urbana – que receberia toda a estrutura urbana, assim como os principais serviços públicos de saúde, educação e saneamento básico;
  • a área suburbana – que deveria ser ocupada posteriormente e que por isso, não recebeu um projeto de infraestrutura;
  • e a área rural – formada por colônias agrícolas que deveriam funcionar como um cinturão verde e abastecer a nova capital com produtos.
Arte de: Piero Bagnariol Francesco Kotsubo

Circundada pela avenida do Contorno, a área central deveria abrigar toda a parafernália estatal e seus funcionários, assim como o comércio da cidade. Já a área suburbana foi destinada, principalmente, aos trabalhadores europeus que vieram trabalhar na construção. Enquanto a área rural foi ocupada pela população negra formada por ex-escravizados e filhos destes.

Todo esse projeto de ocupação urbana representava não só a modernidade angariada pelo Estado brasileiro, mas serviu também para moldar o imaginário do cidadão moderno, interferindo na espacialização econômica da cidade. Ao mesmo tempo em que promovia a exclusão e a segregação social, refletindo a política de embranquecimento da população brasileira. Tudo isso é algo que a HQ explora com maestria em seu arco final.

De uma certa antropologia

Mas há mais, muito mais para quem percorre os caminhos de Baú a nova capital. Há elementos para se pensar não só a mineiridade, mas a própria brasilidade com todas as suas contradições e potências.

Dentre essas contradições, está a própria figura de Santelmo. Homem branco, letrado e de família abastada. Alguém que, em diferentes momentos se põe ao lado dos injustiçados, mas incapaz de perceber os seus privilégios e o seu local na hierarquia social. 

Nesse sentido, o personagem acaba adentrando na seara de outros personagens como Corto Maltese, de Hugo Pratt, e “O Colecionador“, de Sergio Toppi. Pois, ali do alto de sua branquitude, os personagens servem como observadores dos efeitos da colonização e da escravidão. 

E se tratando de Santelmo Enfeitiçado, temos espaço não só para as articulações políticas de quilombos e de outros ex-escravizados negros, mas também para a denúncia do genocídio indígena e lembrar que Minas Gerais também é lar dos povos originários.  

Conclusão

Olhar para o passado de nosso país é lançar luz aos vazios, é visualizar apagamentos, mas também criar pontes para que o nosso futuro seja melhor, mais vibrante e plural. É necessário olhar para aquilo que o Brasil profundo tem de melhor, para que o Brasil institucional possa enfim refletir aquilo que temos de excelência.

Antes de terminarmos o texto, preciso falar sobre o uso do efeito de Luca na HQ. São várias e várias páginas, onde vemos os personagens, repetidamente, a fim de dar a impressão de movimento pelo cenário. Mesmo que aqui, a composição ainda siga um modelo mais ortodoxo. Todavia, mesmo este layout mais rígido possui o propósito de imergir personagens e quem lê na rica paisagem retratada.

Por fim, leiam Santelmo Enfeitiçado, aproveitem a jornada do velho mágico e um pedaço da nossa história. 

Nota: 4

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