Hoje vou pedir licença para falar desse ser metafísico que é o colecionador de quadrinhos. E começo dizendo que esse texto surgiu por conta de um incômodo com o termo. Ao mesmo tempo que o vocábulo é vago e genérico, ele é ostensivamente utilizado quando falamos sobre o mercado de quadrinhos, o constante aumento nos valores dos gibis e a quantidade cada vez maior de títulos publicados.
Mas afinal de contas o que é o colecionador de quadrinhos? Do que este ente se alimenta? E por que a sua figura vem sendo tão fortemente atrelada ao consumismo que tomou conta da nossa Gibisfera?
Inicialmente, o que posso dizer é que toda vez que a figura do colecionador é acionada para se falar dessa corrida desenfreada por se adquirir, ler e comentar o último petardo lançado, um Robin morre. Pois, se há algo que foge dessa pressa pelo imediatismo é aquele ou aquela que coleciona algo.
Afinal o que é colecionar?
Em um outro texto aqui do blog procurei esclarecer o que é esse tal de colecionismo, as suas etapas e o que torna alguém um colecionador. De lá para cá, continuei a ruminar o assunto e graças a algumas coincidências, acredito que seja necessário trazer novos dados.
Colecionar é normalmente confundido com o ato de adquirir um objeto. E falo isso, porque costumeiramente embaralhamos o prazer de comprar um quadrinho, ler um quadrinho e colecionar um quadrinho. Não à toa vemos aqui e acolá fotos de enormes pilhas de gibis aguardando o momento certo para ser lido, parafraseando o ensaísta e editor italiano Roberto Calasso.
De pronto, não há nenhum problema com essas grandes pilhas espalhadas por aí. Contudo é preciso entender que um comprador não é necessariamente um leitor; já um leitor não é impreterivelmente um colecionador e, de antemão, um colecionador é eventualmente um leitor. Confuso?
Ajuda se pensarmos que o comprador adquire um determinado objeto para ostentá-lo sem muitos critérios e buscando uma fruição estética. O famoso lombadeiro – “vai ficar lindo na estante”. Enquanto o leitor é aquele que está sempre lendo, que sente uma fagulha que o impele aos livros e aos quadrinhos. Tanto que o que um leitor necessita é de acesso aos materiais de leitura, o que uma boa rede de bibliotecas públicas garantiria.
O colecionador está em uma categoria diferente. A pessoa que coleciona é impulsionada por um estímulo e que apesar de serem várias as motivações para isso, podemos simplificar e dizer que há uma incitação racional-emocional que leva uma pessoa a obter e guardar um determinado item.
Dito em outras palavras, aquelas peças reunidas se tornam um objeto-tema.
Do objeto-tema e o colecionador de quadrinhos
E o que é um objeto-tema? Responder essa questão é como tentar contar as areias do deserto ou as estrelas no céu. Ele pode ser tampinhas de garrafa, tazos, moedas e notas, tênis, peças de arte, livros, funko pop, relíquias mágicas, cds, vinis, quadrinhos e quaisquer outros artefatos que você conseguir pensar.
Contudo uma pessoa só se tornará um colecionador quando ela tiver consistência. O que no caso do colecionador de quadrinhos indica que dentre os inúmeros títulos publicados, será o objeto-tema que passará a orientar as suas aquisições. O que não significa que todo quadrinho comprado fará necessariamente parte de uma coleção.
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Passado o choque dessa informação, vamos aos fatos. Primeiramente, é necessário entender que quando falamos colecionador de quadrinhos, apesar do termo ser vasto, deve se entender alguém que coleciona determinados quadrinhos. Podendo ser de um personagem, de um(a) quadrinista em específico, às vezes de uma editora ou selo em particular e até mesmo de um determinado período.
Segundo, uma coleção deve ser vista como um arquipélago: ilhas de informação que vão se formando em torno de um todo coeso. Ao passo que uma coleção pode ser dividida (ou não) em subtemas que compartilham entre si um mesmo pensamento orientador.
Terceiro que colecionar é também saber fazer recortes. Não há como se colecionar de tudo, pois rapidamente você se depara com gargalos de espaço físico e financeiro. Além disso, colecionar não é sobre acumular, mas contar uma história sobre si. Tanto que, aos olhares mais atentos, é possível se ter um vislumbre da paisagem mental de um(a) colecionador(a) somente passeando por entre as prateleiras das estantes.
Por tudo isso, é necessário ter em mente que um colecionador de quadrinhos não é, ou pelos menos não deveria ser, sinônimo de compras desenfreadas.
Navegando por águas turbulentas
Nos últimos anos, o colecionismo ditou o mercado editorial brasileiro e isso, para o bem e para o mal, colocou a figura do colecionador de quadrinhos no centro de várias questões. Dentre elas, destaco a questão do elitismo, afinal de contas o valor das nossas HQ’s vem subindo anualmente e o nosso salário não acompanha essa escalada.
O colecionador de quadrinhos se tornou, em última medida, um ser mitológico com uma carteira infinita. Um Bruce Wayne, um Tony Stark ou um Tio Patinhas que compra títulos e mais títulos sempre acompanhando as opiniões de influenciadores ou editoras que insistem em comentar o novo clássico recém-lançado. Porém, mais uma vez, essa caricatura em nada condiz com a realidade de quem coleciona.
Existem colecionadores endinheirados? Sim. Existem coleções gigantescas de dar inveja? Mas é claro. E dentro da Gibisfera não faltam exemplos, despejados pelas redes sociais, de vídeos de recebidos ou de compras que causam uma pontinha de inveja em que os assiste. Ainda assim, insisto que esta representação do colecionador que consome tudo e tudo conserva não é o seu retrato fiel.
Um colecionador de quadrinhos é alguém que se guia por entre os títulos publicados como um experiente marinheiro a fim de encontrar os seus portos seguros. Publicações que se conectam de alguma forma com a sua própria história e que com o tempo o ajudam a se guiar, criando um mapa claro e fidedigno de seus desejos.
Mapeando seu arquipélago
Olhe para a sua coleção, veja os autores, os personagens, os temas ou editoras que a permeiam. Repare na forma como ela é organizada. Análise a sua história com a nona arte, aqueles quadrinhos que realmente mexeram com você. Observe atentamente as conexões, os nós que a sustentam, aqueles volumes que se aglomeram e acabaram por formar pequenas ilhas dentro do seu arquipélago mental.
Por aqui, para dar um exemplo, tenho seis grandes ilhas:
- Alan Moore;
- Grant Morrison;
- Vertigo;
- DC;
- Graphic MSP;
- Corto Maltese.
Em torno delas gravitam algumas ilhotas como Quadrinhos argentinos (em especial Alberto Breccia), Quadrinhos brasileiros (com uma maior ênfase Flávio Colin, Marcelo D’salete, Shiko), Jeff Lemire e várias outras.
Isso não significa que são os únicos títulos que compõem a minha coleção e há inúmeros outros autores e autoras presentes nas prateleiras que me cercam. Entretanto, posso dizer claramente quais são os objetos-tema que me orientam na hora de adquirir este ou aquele quadrinho. O que também não quer dizer que sou inflexível e não compro nada que esteja fora da minha lista.
Aliás, a faceta colecionador acaba se deixando influenciar, e muito, pela faceta leitor, pois a vontade é a de ler a maior quantidade possível de quadrinhos. Principalmente quando vou a um festival, uma feira ou até mesmo navegando por entre os canais que me informo na internet. Bons quadrinhos sempre vão surgir no caminho, mas é necessário ter sabedoria na hora de adquirir. Como diz o crítico e tradutor Érico Assis: “Você vai ler bons gibis tendo calma e crítica”.
Por isso, atente-se à sua coleção. Veja quais são as ilhas e corais que se formaram em suas estantes, pondere sobre os objetos-tema que permearam as suas escolhas e veja aquilo que faz ou não sentido em manter e/ou comprar. Todavia, lembre-se que uma coleção é um ser vivo e que de tempos em tempos pode mudar a sua configuração de ser ou até mesmo deixar de ser.
Para terminar, deixo o convite para que você revisite a sua coleção. Passe um tempo entre os volumes e deixe as memórias virem: aquele quadrinho que foi difícil de achar, aquele que te faz lembrar de alguém especial, aquele queridinho autografado. Perceba as lacunas, principalmente elas, e deixe se surpreender pelos caminhos novos que podem vir dali.