Ficha Técnica
O Soldador Subaquático
Autores: Jeff Lemire (roteiro e arte)
Preço: R$ 59,90
Editora: Ed. Mino
Publicação: Novembro / 2016
Número de páginas: 224
Formato: Americano (26,5 cm x 17,5 cm) Preto e branco / Lombada Quadrada / Capa brochura
Gênero: Suspense
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Sinopse: Jack, 33 anos, trabalha em uma plataforma petrolífera no litoral do Canadá como soldador subaquático. Prestes a ser pai um estranho acidente em alto mar o coloca em rota de colisão com fantasmas do passado e uma pergunta se faz presente: o que é ser pai?
Introdução
O Soldador Subaquático é a segunda obra do quadrinista canadense Jeff Lemire com a qual tive contato, a primeira foi Trillium, um thriller de ficção científica, publicada pelo selo Vertigo da DC Comics. E após o término da HQ posso dizer que se existem autores aficionados por determinados temas e seus desdobramentos, Lemire talvez seja um deles.
Trillium, originalmente publicada em 2013, pode ser lida como uma continuação espiritual de o Soldador Subaquático, publicada um ano antes pela Top Shelf Productions. E digo isto, pois se em 2012 a temática de Lemire era o conectar-se consigo, no ano posterior o tema se desdobra no relacionar-se com o outro e compreender a beleza da alteridade. Além disso, há uma série de outras similaridades entre as duas HQs do canadense que reforçam essa possibilidade.
Algumas das características compartilhadas entre as HQs são:
- a presença de objetos mágicos;
- a perda das figuras paternas;
- temas como morte e vida, perda e aceitação;
E não para por aí, já que algumas sequências e enquadramentos possuem correspondências visíveis até mesmo aos olhares mais desatentos. E entre Jack, personagem principal de o Soldador Subaquático, e Nika, a heroína de Trillium, há mais semelhanças do que tempo aqui para destrinchá-las, por isso deixo a minha dica aos leitores mais compenetrados.
Mas se há algo que torna o Soldador Subaquático única nessa cadeia de correspondências é o silêncio. Um silêncio profundo, agudo e que se propaga, de diferentes maneiras em Jack. E este mutismo é tão grande que se exterioriza aqui do lado de fora em nós, homens.
Do silêncio e da masculinidade
Lendo a HQ, não pude deixar de lembrar do documentário O Silêncio dos homens produzido pelo pessoal do site Papo de Homem. Fruto de uma pesquisa com mais de 40 mil pessoas, o documentário apresenta alguns dados e lança algumas reflexões acerca do que é ser homem nos dias atuais, tais como: 7 em cada 10 homens não conversam sobre seus sentimentos e toda essa mudez ecoa como nos diz Guilherme Nascimento Valadares, editor do site:
Silêncio aqui tem sentido amplo. É emocional, verbal, social, tanto individual como coletivo. Estamos falando de uma rigidez psicológica, que se torna um vulcão quando associada aos “mandamentos da masculinidade”: ser bem-sucedido profissionalmente, não agir de modos que pareçam femininos, não levar desaforo pra casa, dar em cima das mulheres sempre que possível, não expressar emoções, dentre outros.
E dentro deste cenário, o mutismo de Jack dialoga diretamente com as questões e buscas por novos tipos de masculinidades que possam nos dar a chance de nos conectarmos com nossas emoções. Afinal de contas, o personagem reproduz uma série de lugares comuns a tantos homens e não é difícil de reconhecê-los.
As longas jornadas de trabalho, a superficialidade das conversas com seus colegas de trabalho, o fingir que está tudo bem, o uso de frases prontas para encerrar discussões, os ouvidos moucos às queixas de sua parceira, o distanciamento emocional. Em suma, como manda a cartilha do que é ser homem, Jack afoga tudo o que sente, aguenta o tranco, engole seco e segue em frente como um “macho” de verdade faria.
Vários são os momentos onde podemos enxergar de forma mais nítida essas atitudes, mas não espere obviedades no enredo do quadrinista canadense, tudo em o Soldador Subaquático vem carregado de uma simbologia ímpar. Seu título, os enquadramentos, a presença do mar, a importância do dia das bruxas, as dicotomias exploradas, tudo ali é colocado para demonstrar o quão perdido Jack está.
Da solidão de Jack
Em uma parte da HQ, Jack, enquanto faz uma operação de rotina na plataforma petrolífera, diz que “você precisa ignorar o fato de que está debaixo d’água… Sob toda aquela pressão…” e finaliza relatando que tudo é uma questão de controle. E acostumados a suplantar suas emoções, muitos dos homens atuam como se fossem soldadores subaquáticos: ignoram a pressão e lutam para manter o controle.
Outro desses momentos, onde podemos ver com mais clareza todas essas camadas, é a sequência onde Jack e Susie, sua esposa, estão dirigindo de volta para casa. após um acidente na plataforma petroquímica. E o mais impactante de toda esta sequência é a sua capacidade de síntese, condensando os temas da HQ em três páginas, Lemire passa pelo isolamento de Jack, seu sentimento de inadequação, seu mutismo, a dor causada a Susie e sua relação com seu pai.
E para uma maior compreensão dos diferentes níveis de leitura desta e de outras partes da HQ deixo abaixo o vídeo, em inglês e infelizmente sem legendas, do canal Strip Panel Naked, onde podemos ver todo o emaranhado de significados criado pelo canadense.
Do pai, do filho…
Em o Soldador Subaquático há um elemento cíclico explorado por Lemire e que remete diretamente a duas questões fundamentais: O que é ser um homem? O que é ser um pai?
Por muitos anos, ambas as perguntas eram respondidas por um único modelo perpetuado e absorvido por homens sem muito obstáculos. Um modelo machista no qual não havia espaço para vivências diversas e que cobra um alto custo de homens e mulheres. De pai para filho, geração após geração, violências e padrões de comportamento foram perpetuados, criando homens taciturnos, irresponsáveis, silenciosos e violentos.
Contudo, se Jack não performa exatamente o padrão de homem violento ao qual estamos acostumados, devo alertá-los que este padrão não existe e que todos nós, homens, podemos e realizamos atos de violências com nossas parceiras ao silenciá-las, desmerecê-las ou apequena-las em nossas falas. E nisso tanto Jack quanto seu pai, Joseph, compartilham do mesmo pecado.
Reflexos de uma masculinidade capaz somente de produzir homens doentes, Jack e Joseph não possuem ferramentas para lidar com suas dores e que por isso submergem em um oceano de frustrações e medos. Um esticar temporal que une pai e filho através de uma herança maldita que os leva a viver em um não-lugar. Esta continuidade é explorada de forma magistral na segunda metade da HQ por meio de flashbacks e pela materialização deste espaço vazio e isolado que existe em ambos os homens.
Com efeito, é dentro deste purgatório que Jack encontrará o necessário para quebrar o ciclo desta masculinidade tóxica e trazer paz para si e para o fantasma de seu pai. Mergulhando fundo em sua própria história, fazendo com que o próprio tempo dobre sobre si, o soldador une passado, presente e futuro para se conectar novamente aos seus sentimentos. O que por sua vez permite tornar-se um homem melhor capaz de assumir o seu lugar como pai, companheiro e agente transformador de sua própria vida.
Conclusão
Por fim, o Soldador Subaquático é uma poderosa fábula acerca da masculinidade, e que mesmo não abrangendo todas as vivências possíveis desta categoria, toca em pontos em comum a vários homens. Além disso, nos convida a tomarmos a responsabilidade de avançarmos na busca por outras masculinidades.
Com uma edição caprichada da Editora Mino, o Soldador Subaquático demonstra toda a eloquência do texto de Jeff Lemire e nos mostra os motivos do nome do quadrinista estar tão onipresente nos últimos tempos.
Nota: 4 de 5