Ficha Técnica
Bojeffries: a Saga
Autores: Alan Moore (roteiro), Steve Parkhouse (arte)
Tradução: Leandro Luigi Del Manto, Flavio Pessanha
Letrista: Magno Fraga
Preço: R$ 55,00
Editora: Top Shelf Productions / Devir
Publicação: Junho / 2020
Número de páginas: 96
Formato: Magazine (21 x 28 cm) Colorido/Preto e branco/Capa dura
Gênero: Comédia
Sinopse: Um cansado pai, dois adolescentes, um vampiro, um lobisomem, uma entidade lovecraftiana e um bebê nuclear. Eis a família Bojeffries. Vivendo nos subúrbios de Londres e lutando contra cobradores de aluguel, reuniões de trabalho, festas de fim ano e tantos outros problemas do dia a dia.
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Alan Moore é sem sombra de dúvidas, um dos maiores nomes da nona arte. Tanto que mesmo aposentado, continua a roubar os holofotes sempre que fala algo sobre o status do mercado de quadrinhos. Porém, muitas das suas obras ainda continuam inéditas por aqui e, consequentemente, várias facetas do autor de V de Vingança e Watchmen passam batidas pelo grande público. O que torna Bojeffries: a saga um belo resgate do lado cômico do mago de Northampton.
No entanto, e aqui fica o primeiro aviso, o humor de Moore é um tanto quanto peculiar. E se fosse para descrevê-lo, diria que é algo bem próximo do lendário grupo de comédia britânico Monty Python. Uma mistura de humor pastelão, nonsense e algumas pitadas de crítica social, tendo como pano de fundo a vida num subúrbio de classe trabalhadora.
O início de tudo
Bojeffries: a saga foi a terceira série produzida por Moore, com Steve Parkhouse no comando dos pincéis, para a ontológica revista Warrior. Tendo a primeira história sendo publicada na Warrior número 12 (Agosto de 1983) e outras três na edição 21 de julho de 1984 [para saber mais sobre as edições da Warrior clique aqui.].
Depois deste período na ontologia de Dez Skinn, Bojeffries percorreu um longo caminho e foi publicada em diferentes editoras como:
- Fantagraphics – onde foram reimpressas as quatro primeiras histórias mais um prólogo inédito em 1986;
- Atomeka Press – onde foram publicados outros quatro capítulos entre 1989 e 1990;
- Tundra Press – que republicou as dez histórias originais mais alguns materiais extras em 1992. Em 2004, houve uma nova publicação da HQ na antologia A1: Big Issue Zero. O plano era publicar todos os contos numa preparação para uma nova série intitulada A1: Bojeffries Terror Tomes que acabou não indo para frente.
- Top Shelf Productions / Knockabout Comics – em 2013, as duas editoras publicaram conjuntamente uma nova edição coletando todo o material anterior e trazendo uma história inédita, de vinte e quatro páginas, considerada por Moore como a última da família, até então.
Bojeffries: a saga – Edição brasileira
É esta última coletânea, da Top Shelf Productions / Knockabout Comics, que a Editora Devir fez chegar, pela primeira vez, a terras brasileiras. A propósito, ela possui uma curiosidade, tomando algumas liberdades quanto à sequência das histórias. Ao invés de seguir uma ordem cronológica para as HQs, ela opta pela narrativa invertendo assim algumas das HQs.
Por aqui, além de todo o material, o volume ainda conta com um prólogo escrito por Alexandre Callari, integrante do Pipoca & Nanquim, e uma nota introdutória de Steve Parkhouse contextualizando a série.
Ainda falando sobre a edição brasileira, uma coisa que senti falta foram as informações das datas de publicações originais de cada história. Apesar de parecer algo menor, ter este dado facilitaria o entendimento da conjuntura vivida pela Inglaterra e pelos autores, o que poderia proporcionar alguns insights durante a leitura.
Por isso seguem as informações que encontrei acerca dos contos, seus títulos e a data de publicação original:
- Bojeffries: a saga (que reúne The Rentman Cometh e One of our Rentmen is missing ambas publicadas nas Warrior 12 e 13 de 1983 e Batfishing in Suburbia publicada na revista Dalgoda de 1986);
- A noite de folga do Raoul (Raoul’s Night Out” Parts I–II publicadas nas Warrior 19 e 20 de 1984);
- Festus: a madrugada dos mortos (Festus: Dawn of the Dead publicada na A1 #1 de 1989);
- Sexo, com Ginda Bojeffries (Sex with Ginda Bojeffries publicada na A1 #2 de 1989);
- Nossas férias coletivas (Our Factory Fortnight publicada em The A1 True Life Bikini Confidential em 1991);
- A canção dos sobrados (Song of the Terraces publicada em A1 #4 em 1990);
- Um natal tranquilo com a família (A Quiet Christmas with the Family publicada em A1 #3 em 1990);
- Depois da fama (After They Were Famous publicada pela Top Shelf Productions / Knockabout Comics em 2013).
Bojeffries: a saga – comédia para inglês ver
Tendo como mote a sociedade inglesa e suas particularidades, a HQ pode ser vista como uma homenagem à Família Addams. Reunindo várias entidades sobrenaturais sob um mesmo teto e guiadas por um patriarca, aparentemente sem poderes, mas igualmente estranho, Moore cria um espaço perfeito para tecer suas críticas e explorar a cultura britânica.
Este aspecto, o de retratar o cotidiano inglês, é o maior trunfo da HQ, pois vemos um Moore bastante à vontade no roteiro. E nesses oito capítulos que compõem este volume vemos de tudo um pouco, aonde a origem do humor vem justamente da interação da família com o mundo normal à sua volta. Como por exemplo, na primeira história onde os Bojeffries precisam lidar com um insistente cobrador de aluguel do governo, que após descobrir nos registros uma dívida de mais de trinta mil libras.
Aliás, a forma como a dupla utiliza o cobrador de aluguel tanto para apresentar a família, quanto para nos introduzir a este estranho universo é fantástica. Igualmente, o cobrador consegue se mostrar um personagem engraçadíssimo e que dialoga muito bem com o espírito da época e suas críticas à mentalidade burocrata. Sendo ela a minha preferida do álbum.
Ainda no campo das críticas, A noite de folga do Raoul, conto focado no lobisomem tio Raul, aborda a classe operária, suas contradições, e o fascismo existente na sociedade e na polícia inglesa da época. Assim como A canção dos sobrados que funciona como uma opereta narrando a rotina nos subúrbios londrinos.
Sitcom, gags e de onde vem o humor de Bojeffries
Apesar de ser fortemente alicerçada na realidade inglesa, muito do humor de Bojeffries: a saga se deve a comédia de situação (sitcom) e às suas poderosas gags visuais trabalhadas com um texto afiado. Mesmo que este texto às vezes seja um sotaque impronunciável como acontece em Festus: a madrugada dos mortos.
Nela vemos o tio Festus saindo à procura de sangue enlatado e a cada esquina sendo reduzido a cinza, por situações cada vez mais improváveis. Como ser apunhalado por uma estaca incerta nas mãos de um vendedor de cercas de madeira.
Todo este humor absurdo é trabalhado cuidadosamente pela dupla Moore-Parkhouse nas primeiras HQs e não são poucos os momentos onde o espanto toma conta. E o que resta é uma gargalhada ou um sorriso ao final de vários quadros e cenas, mesmo que às vezes um sorriso amarelo. Pois, nem sempre a situação apresentada é cômoda e o cômico é usado não para amenizar, mas acentuar toda a violência de algumas cenas.
Steve Parkhouse e a arte de Bojeffries: a saga
Admito que Parkhouse até então era um nome desconhecido, no entanto depois de ler a HQ não consegui pensar em mais ninguém para a série. O traço do desenhista é capaz de retratar toda a crueza das paisagens urbanas que cercam os personagens, mas ao mesmo tempo torná-las aconchegantes.
O prólogo é especialmente feliz por representar este lado mais idílico que Parkhouse imprime em algumas das HQs. O conto sobre as tradições familiares sendo passadas de pai para filho é perfeito para que o desenhista deslize pela arquitetura londrina, colocando-a sob a luz de uma lua cheia.
Talvez o mais interessante nos desenhos de Parkhouse em Bojeffries: a saga seja como eles dão um ar nostálgico, quase romântico as histórias. A ambientação dá aos personagens da família um caráter fantasioso, reforçando como eles estão deslocados daquela realidade. Tornando-os assim, os comentaristas perfeitos dos delírios da Inglaterra.
Porém, por conta das idas e vindas da série, as técnicas e o próprio traço de Parkhouse vão mudando. E se no início havia um tom mais underground nos desenhos, com forte uso de hachuras, com a passagem dos anos vai ficando mais limpo, simples, mas não menos estilizado. Já em relação às técnicas utilizadas por Parkhouse vemos uma mudança do bico de pena para o digital na edição final.
Essa variação nos desenhos não chega a incomodar, contudo fico com os desenhos das primeiras narrativas, que para mim acabam sendo mais expressivos e combinando melhor com o tom desses pequenos contos satíricos.
Conclusão
Bojeffries: a saga possui altos e baixos e, além disso, é preciso dizer que, vez ou outra, a barreira geográfica se torna um empecilho para as piadas. Sendo a última história aquela em que mais senti este entrave, já que Moore pesa e muito a mão em citações à cultura londrina.
Aproveitando a deixa, acredito que seja necessário falar um pouco mais sobre esta última história. Depois da fama, foi escrita após um hiato de vinte e dois anos e é perceptível o quanto ela possui um tom mais desalentador. Mostrando os rumos que a família tomou, agora integrados à sociedade inglesa, os personagens sofrem com a perda da aura romântica que os protegia.
Tudo nessa história é mais cínico, desencantado e embaraçoso. E Moore mira alto em suas críticas, que por serem demasiadas específicas, pecam no riso e no deboche. Quase como se estivéssemos vendo uma piada interna que, precisando de uma explicação, deixa um gosto amargo na boca.
Para terminar, Bojeffries: a saga é um interessante resgate da bibliografia do mago de Northampton sendo algo singular em sua produção, justamente por podermos ver mais de perto essa sua veia humorística. Apesar disso, e mesmo possuindo bons momentos, o álbum serve mais para satisfazer a curiosidade dos fãs mais assíduos, como este que lhes escreve.
Nota: 3