Ficha técnica
Cálculo renal
Autores: Raphael Fernandes (roteiro) e Danilo Dias (arte)
Preço: R$ 25,00
Editora: Draco
Publicação: Fevereiro de 2024
Número de páginas: 32
Formato: 16,5 x 23,5 cm Colorido/Preto e branco/Lombada com grampos
Gênero: Terror
Sinopse: Em Santos há um horror a espreitar os portos, as escolas e os corações dos homens. Um horror inominável, indizível e com fome. Prepare-se para adentrar a um novo capítulo dos contos lovecraftianos.
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H.P Lovecraft é um racista. Ponto. Não há como negar tal fato e quem o faz está enganado, mal-informado ou é mau caráter. Isto posto, a melhor forma de nos vingarmos é nos apropriando de seu universo, seus monstros e seus escritos e elevá-los a um outro patamar. Seja recriando e consequentemente enriquecendo-o, como Victor Lavalle e o seu A Balada de Black Tom, seja transformando-o em algo nosso e levando-o a outras paragens, como acontece em Cálculo Renal de Raphael Fernandes e Danilo Dias.
Aqui, os horrores cósmicos são trazidos para o litoral paulista, mais especificamente a cidade de Santos e se entrelaçam com os Crimes da mala. Dois brutais assassinatos ocorridos em 1908 na cidade de Santos e em 1928 na capital São Paulo, onde os assassinos utilizaram o mesmo método de ocultação do cadáver de suas vítimas: desmembrá-los e despachá-los em malas para outro país.
É unindo true crime com a mitologia criada por Lovecraft que a dupla de quadrinistas vai desenvolver uma trama envolvendo segredos de família, um estranho investigador de antiguidades e uma dupla de policiais cretinos.
O horror cósmico numa pedra nos rins
Se tem uma coisa que eu gosto são histórias redondinhas. Aquelas que sabem onde querem ir ao mesmo tempo em que apresentam um universo conciso, coeso e que ainda deixam aquelas pontas aqui e ali, para quem sabe ali no futuro o revisitarmos. Aconteceu isso com O caso do churrasco na laje e se repete aqui com Cálculo Renal.
A capacidade de síntese do roteiro é ímpar e nenhuma página é desperdiçada. Não há barrigas no roteiro e cada um dos personagens possui um “tempo de tela” (ou seria de quadro?) suficiente para nos conectarmos a eles. Um exemplo deste poder de condensação do roteiro, é que mesmo tendo somente 32 páginas, vemos até a origem dos poderes do personagem principal, o investigador Augusto Macário.
Uma hipótese que me ocorreu enquanto lia a revista foi a de que o sobrenome Macário talvez seja uma referência a peça teatral homônima do escritor paulista Álvares de Azevedo. Na peça, que é dividida em dois atos, Macário conhece Satã e sai mudado desse encontro. Algo bem próximo ao que vemos na HQ, mas que ganha contornos mais lovecraftianos.
A própria escolha da cidade de Santos, se mostra também como uma decisão tomada em prol de se manter determinados ecos das histórias do escritor norte-americano. A cidade litorânea como ponto de contato com os horrores que se escondem nas fissuras da razão e um antigo marujo, antiga profissão do protagonista, tendo que lidar com tais fatos.
Porém, dentro desta costura feita pelo roteirista, o que salta aos olhos é a forma como a xenofobia e o racismo encontrados nos textos de Lovecraft são utilizados para criar um comentário rápido, mas perspicaz sobre como os temas são tratados em nossa própria sociedade.
O verde e o lodo de Cálculo Renal
Outro ponto a se destacar em Cálculo Renal é a arte e as cores de Danilo Dias. Quanto a arte mais cartunesca do desenhista, ela não atrapalha no horror da história, pelo contrário, o valoriza. Os rostos repuxados, as expressões alucinantes e os olhos esbugalhados dos personagens me fizeram lembrar da atuação de Bruce Campbell em Uma Noite Alucinante: A Morte do Demônio. E bem, se há algo que acaba casando e muito bem com a loucura dos grandes antigos são as expressões de Campbell.
A predominância do verde serve não só para referenciar outra obra da editora Draco, no caso O Despertar de Cthulhu em Quadrinhos, mas também para construir o tom necessário para a história.
O verde é um elemento contaminante na HQ. Tudo aquilo que já teve contato com o mal em suas diferentes formas é manchado. Uma marca de que basta apenas uma olhada no abismo para que presas sorriam de volta. E como podemos notar na quantidade de verde utilizado, muitas pessoas e locais flertaram com as sombras que habitam o espaço profundo, assim como o próprio ambiente onde os personagens estão inseridos. Como resultado, toda a ambientação é repuxada, deformada, como se a presença dos horrores cósmicos afetasse a cidade de Santos.
Conclusão
Comecei o texto dizendo que Lovecraft é sim um racista e se você ainda tem dúvidas sobre Lovecraft ser ou não um racista, recomendo que ouça a entrevista do professor de história e escritor Luis Otávio Canevassi de Freitas clicando aqui.
Porém, o que fazer com autores racistas como Lovecraft? A primeira coisa é se aprofundar e entender os motivos para todo esse preconceito. Compreender as suas motivações e principalmente os porquês de ele ter utilizado isso em seus contos. Feito isso, cabe a pergunta: quais são as ideias que realmente são boas desse caldeirão e que podemos utilizar?
Cálculo Renal é um bom exemplo disso. Se apropria do que há de melhor nos conceitos do escritor norte-americano e leva-o a uma direção onde todo este preconceito é confrontado enquanto se cria algo novo dentro do gênero do horror cósmico. Fica aqui a minha vontade de podermos ver novas histórias do investigador Augusto Macário.