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Críticas de segunda e Opiniões de quinta sobre Quadrinhos

Por Thiago de Oliveira

Comida de fada: Um conto macabro

Comida de fada: Um conto macabro

Contos de fada nem sempre foram felizes e fofinhos. Comida de fada: um conto macabro nos lembra disso e dos perigos que nos rodeiam

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Ficha técnica

Comida de fada: Um conto macabro capa
Capa de: Val Armanelli

Comida de fada: Um conto macabro
Autora: Val Armanelli
Preço: R$ 65,00
Editora: Independente
Publicação: 2021
Número de páginas: 80
Formato:  23×17 cm
Gênero: Fábula
Sinopse: O que você sabe sobre fadas? E se eu te contar que elas se alimentam de crianças, você acreditaria? Só posso dizer que uma criança nunca mais é a mesma depois de se encontrar com uma fada

***

Contos de fada nem sempre foram felizes e fofinhos. Contos de fadas eram fábulas sobre aprendizados, muitas vezes dolorosos, mas que precisamos aprender e também sobre acontecimentos que insistimos em não ver, mas que mesmo assim precisam ser alertados. Comida de fada: Um conto macabro é do segundo tipo. 

Aliás, como toda boa fábula, o quadrinho pode ser lido de múltiplas maneiras. Há uma camada mais óbvia, que salta ao final da história, e outra mais subjetiva. Algo perigoso que pode atingir crianças, adultos e idosos de diferentes formas, mas que está lá sempre à espreita.

Fato esse corroborado pela própria estrutura narrativa utilizada pela quadrinista mineira, que pode ser desdobrada e entendida como as etapas de um encantamento. Palavra que deve ser entendida em seu aspecto mais amplo. Pois, quem aqui já não se deixou levar pelas cores, pelo riso fácil, pela atmosfera festiva.

A magia daqueles primeiros momentos em que a empolgação turva a razão, aquela olhada para trás no meio do caminho, o arrepio na nuca, a primeira violência, seguida de um afago. Está tudo aqui e Armanelli de antemão, insere logo nas primeiras páginas um aviso: o Homem Pálido do “O labirinto do fauno” do cineasta Guillermo del Toro. Lembrando que, o fantástico e o brilho das fadas escondem alguma coisa mais obscura e violenta. 

Nos cantos escuros

Este aviso criado pelo quadrinho, pode ser lido de diferentes formas por crianças e adultos. Aos menores a HQ serve como um ensinamento e aos maiores como um lembrete. No entanto, este lembrete é ignorado ou deturpado em prol de discursos simplistas na hora de se discutir algo tão complexo quanto o abuso infantil. 

Há em nossa sociedade um desprezo pelo que crianças dizem. Por conta de as enxergarmos como seres incompletos, ignoramos as suas falas, não respeitamos suas singularidades e muitos pais tendem a vê-las como extensões de suas vontades. Coisas sem vontade ou prumo, que ora são tratadas com condescendência, ora como fonte de aborrecimentos.

Jogadas pra lá e pra cá, em um mundo cada vez mais corrido e que exige de pais e mães extensivas jornadas de trabalho, muitas dessas crianças permanecem em uma zona cinzenta, sozinhas e tendo que se virar. Comida de fada: Um conto macabro fala sobre os perigos escondidos nessas áreas e horas cinzentas.

Arte de: Val Armanelli

É necessário nos atentarmos aos dados de uma cruel realidade, na qual 82% da violência contra crianças em nosso país é cometida por familiares. Sendo a casa da vítima, em 76,5% dos casos, o local onde essa violência é cometida. Os dados aqui referenciados estão no Anuário brasileiro de segurança pública 2022

Os dados apresentados pelo Anuário, formam o seguinte perfil: pessoas conhecidas e/ou próximas das redondezas. Figuras que as crianças, em um primeiro momento confiam ou podem confiar. Fato este que a autora, conscientemente ou não, transpôs para a HQ, onde a personagem não precisa ir muito longe de casa para se perder no mundo das fadas. Mundo este onde o perigo passara a espreitá-la. 

Comida de fada ou de um banquete amargo

Voltando as correlações entre a HQ brasileira e o filme do diretor mexicano, ambas as obras possuem uma sequência envolvendo um banquete. Contudo, se para Guillermo Del Toro o perigo reside na desobediência de Ofélia, protagonista do filme, para Armanelli o perigo reside no silenciamento de Ovelha, a protagonista da HQ.

Este primeiro ato de violência cometido em Comida de fada: Um conto macabro é algo que muitos considerariam algo menor. Afinal, não há agressão física contra aquela criança, é apenas o pedido para que ela coma. Porém, aqui ele toma proporções brutais à medida que as fadas sufocam a vontade da garota. É uma sequência incômoda em vários graus, mas que não deixa de evocar este abuso tão comum. 

Um ponto que gostaria de destacar no roteiro de Armanelli é como a história avança em etapas. Etapas essas que evocam não só os estágios de uma relação abusiva, mas também as diferentes formas de violência as quais uma criança pode estar exposta. 

A violência psicológica se faz presente nessa sequência do banquete e no jardim, posteriormente, e que são expressas através de:

  • Silenciamento;
  • Rejeição de sua vontade;
  • Culpabilização

Agressões que ao mesmo tempo despersonalizam aquela criança e que preparam terreno para a agressão física vindoura. Ao passo que, é este percurso de ações de despersonalização o toque de Midas, para que a HQ ganhe tantas camadas; e que possa ser entendido de diferentes maneiras por crianças e adultos. 

Porém, uma boa HQ não pode se ater apenas a um bom roteiro e a quadrinista se destaca pelo uso de uma técnica não muito comum aos olhos do público: a colagem.

Afinal, o que são quadrinhos?

Definir o que é ou não um quadrinho pode ser uma tarefa complicada. Tanto que vez ou outra surge aqui e acolá discussões quanto a sua delimitação enquanto linguagem artística. Por isso, acredito que Comida de fada: Um conto macabro é um daqueles exemplos práticos, que vem, justamente, para demonstrar a plasticidade dos quadrinhos enquanto arte.

Arte de: Val Armanelli

Mesmo com toda a dificuldade em se definir o campo da nona arte, podemos nos basear em alguns princípios para demarcar pontos. Um destes é o da repetição de diferentes elementos, que juntos, farão o efeito narrativo. Algo que pode ser feito através do uso de personagens, pelo artifício do quadro ou até mesmo pela repetição textual. 

Outro destes princípios, é a montagem da página em si para criar o efeito plástico e narrativo. Um processo que se dá por seleção e composição, o que por sua vez se caracteriza como uma criação artística, mesmo que com recursos pré-existentes. 

Então uma história em quadrinhos feita através da colagem é quadrinho? A resposta curta, sim. Um baita quadrinho por sinal. Muito do efeito claustrofóbico de algumas sequências é criado justamente por esta sobreposição de elementos. Além disso, a margem branca, dos recortes, ajuda a criar uma aura em torno dos personagens e outros componentes da HQ, reforçando o aspecto onírico da história.

Outro efeito bastante utilizado pela quadrinista é o efeito de Luca, que junto com o processo de colagem, reforça essa sensação de passagem de tempo e espaço, que muito se assemelha a de alguém caminhando por um palco de Teatro. E convenhamos, teatralidade e fadas deveriam ser praticamente sinônimos. 

Conclusão

Comida de fada: Um conto macabro é um daqueles quadrinhos que justificam você levantar a cabeça e dar uma olhada em torno do mercado nacional, principalmente nos quadrinhos independentes, para encontrar boas opções de leitura.

Uma história rica em camadas, um roteiro que te coloca para pensar e uma arte que explora aquilo que só quadrinhos podem fazer por você. Então, acesse o Instagram da Val Armanelli, siga a quadrinista e torça para que para a próxima HQ não demore a ganhar vida.

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