Ficha Técnica
Dylan Dog: Mater Morbi
Autores: Roberto Recchioni (roteiro), Massimo Carnevale (arte e cores)
Tradução: Julio Schneider
Letrista: Sílvia Lucena
Preço: R$ 74,90
Editora: Mythos / Sergio Bonelli Editore
Publicação: Abril / 2021
Número de páginas: 104
Formato: (21 x 29,5 cm) Colorido/Preto e branco/Capa dura
Gênero: Terror
Sinopse: Acometido por uma misteriosa doença, Dylan Dog é levado às pressas para o hospital. Uma vez lá, o detetive se vê em um longo calvário onde os médicos nada podem fazer para curá-lo. Sua única saída é enfrentar Mater Morbi, a mãe de todas as doenças, em uma jornada que o levará a um passo da morte.
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Antes de começarmos, preciso dizer que a minha relação com a clássica editora Bonelli é cheia de idas e vindas. Li um pouco de Tex, fiquei encantado com Júlia (a ponto de participar de uma oficina de roteiro com Giancarlo Berardi no FIQ de 2007), mas foi somente após um amigo me apresentar um pequeno box da Editora Conrad que descobri aquele que seria o meu personagem preferido da Bonelli: Dylan Dog – o detetive do pesadelo. Porém já havia alguns anos que não punha as mãos em um material do investigador, o que fez com que as expectativas para Dylan Dog: Mater Morbi fossem bem altas.
O motivo, era todo o burburinho em volta da HQ, que já havia sido publicada pela Editora Lorentz em 2017, e que recebeu a alcunha de “a mais cultuada história de Dylan Dog no século XXI” dada por alguns fãs mais ardorosos. Além disso, a HQ ganhou o prêmio de “melhor graphic novel original” no Ghastly Awards, em 2016. E não é para menos, pois terminada a leitura o que tinha em mãos, era um material que me fez lembrar o porquê de ter amado o detetive anos atrás.
Contudo, antes de continuarmos acredito que é necessário contextualizá-lo um pouco devido ao seu histórico conturbado de publicações por aqui. Então, senta que lá vai um pequeno resumo.
Quem é Dylan Dog?
Criado em 1986 pelo roteirista italiano Tiziano Sclavi para a Sergio Bonelli Editora, Dylan Dog – o detetive do pesadelo foi um verdadeiro estouro. Passando pelos gêneros do terror, suspense, drama e humor, o personagem se consolidou no mercado italiano e rapidamente se tornou a segunda série mais vendida da editora, perdendo somente para Tex.
O motivo para este arroubo foram os inventivos roteiros da série que faziam com que Dylan enfrentasse zumbis, fantasmas, vampiros, alienígenas, monstros lovecraftianos e tudo mais que a mente de Sclavi pudesse conceber. E dentro das histórias, Sclavi ainda encontra espaço para incluir tramas mais complexas, enquanto ia avançando com edições mais simples, por assim dizer.
Todo este caldeirão efervescente de ideias, aliado ao carisma do personagem e seu rico repertório de personagens coadjuvantes, fizeram com que ele ganhasse uma infinidade de fãs, até mesmo alguns mais famosos como o escritor Umberto Eco.
No entanto, todo este repertório não garantiu vida fácil ao detetive por aqui, tendo passado um tempo pelas editoras pelas editoras Record (1991), Globo (1993) e Conrad (2001-2002). Encontrando guarida na Mythos, Dylan teve uma série que durou quarenta edições entre 2002 e 2006.
Nesse meio tempo, o detetive teve uma breve passagem pela Editora Lorentz e depois voltou às bancas em novo formato pela Mythos em 2018. Que vem fazendo um trabalho de resgate publicando a série original, ao mesmo tempo em que publica a nova fase do herói.
Além disso, a Mythos vem publicando os especiais Dylan Dog: Almanaque do Pesadelo e Dylan Dog Graphic Novel. Confuso, eu sei, mas você pode pegar o fio de Ariadne e sair desse labirinto clicando aqui.
Apresentações feitas, é hora de passarmos para a HQ e falar sobre os motivos de todo o seu rebuliço.
Dylan Dog: Mater Morbi – um tratado acerca da doença
Muito da força de Dylan Dog: Mater Morbi pode ser descrita em uma palavra: empatia. Tratando de um tema sensível, Roberto Recchioni cria uma HQ que demonstra a força de uma história bem contada e como ela pode nos transportar para outras vivências.
Abordando a questão da doença, Recchioni se esforça para nos mostrar uma inconveniente verdade: é a doença é, mais que a própria morte, a nossa maior fonte de medo. Já que, em sua presença, nada mais faz sentido a não ser a nossa plena reabilitação. E não à toa, é possível dizer que a história da humanidade é constituída de um eterno embate com as diferentes mazelas que nos atormentam.
Xamãs, curandeiros, rezadeiras e médicos sempre a tiveram como inimiga nº1 e muito do que fazemos gira em torno de evitar a sua presença. E se não dedicamos sonetos, músicas, filmes e pinturas à doença, como diz o roteirista italiano, a celebramos diariamente em matérias e buscas na internet sobre como se alimentar bem, se exercitar e tantas outras táticas para nos mantermos saudáveis.
Todo este nosso terror se materializa logo no início da HQ com Dylan sofrendo um mal súbito. Uma dor em seu peito que o retira do convívio de seu amigo Groucho e sua namorada e o leva a ser internado. E à medida em que a doença vai ganhando novos contornos, a dúvida, a impotência e o pânico vão ditando o ritmo e o tom da realidade que cerca o detetive.
E é justamente, o acompanhar deste processo, que nos leva a vivenciar a doença tão intimamente. Vemos o sofrimento de Dylan, suas queixas, suas inseguranças e principalmente o seu martírio à medida em que adentra aos domínios de Mater Morbi.
A doença, os médicos e eutanásia
No entanto, é em uma sequência brutal dentro da UTI que Recchioni nos recorda como a doença nos aparta da sociedade e nos coloca em um processo de desumanização. No hospital, longe daqueles que ama e sob a égide do anonimato e do isolamento, ficamos expostos à possibilidade de sermos objetificados.
Esta sequência, expõe a fragilidade da relação médico-paciente em uma situação onde a saúde é transformada numa mera relação comercial. Uma na qual, os médicos e enfermeiros se restringem a seguir os protocolos burocraticamente cumprindo assim o acordo firmado entre as partes. E tudo pode ficar ainda mais nebuloso em casos de doenças terminais ou incuráveis, afinal de contas em casos assim surge a necessidade de se discutir até onde é ético adiar a morte? Desta forma, Recchioni levanta a discussão não só da despersonalização do doente, mas também a da eutanásia.
Temos que lembrar que o tema ainda é um tabu e poucos países são aqueles que autorizam o
seu procedimento. Por consequência, como a própria HQ nos lembra, não são poucos os que para escapar das garras de Mater Morbi invocam a própria morte. Ou seja, enquanto não discutimos abertamente o tema, seus limites e a vontade do paciente, para aquém das posições religiosas dominantes, as pessoas sofrem e recorrem sozinhas a medidas extremas.
Agora pensem no contexto onde Dylan Dog: Mater Morbi foi publicado e agora vocês podem adivinhar o motivo para toda a agitação em torno da história. Uma Itália, fervorosamente católica, discutiu o assunto com direito a declarações da subsecretária de Estado do Trabalho, Saúde e Políticas Sociais Eugenia Roccella em 2010.
Dylan Dog: Mater Morbi – um tratado sobre aceitação
Entretanto, toda essa discussão acerca da doença também é uma história sobre sua aceitação. E para isso, Recchioni cria a figura de Vincent, um garoto que convive com uma doença incurável desde a infância.
Atuando tanto como um contrapeso ao desespero de Dylan, Vincent também serve como um guia ao detetive. Algo como Virgílio faz com Dante em A Divina Comédia e que me faz pensar que é uma referência a esta outra dupla escrita por um outro italiano.
É Vincente que explica como Mater Morbi age, quais são os seus domínios, como é a relação entre a entidade e a medicina, assim como a chave para que Dylan possa derrotá-la. E aqui, sem dar muitos spoilers, o texto de Recchioni consegue cruzar com sucesso a fina linha entre o fatalismo resignado e o pieguismo. E não é por menos, já que o texto do roteirista italiano é de uma potência ímpar e nos leva a refletir sobre os limites da vida.
Conclusão
Muito da aura de terror de Dylan Dog: Mater Morbi vem justamente desse sentimento de impotência e fragilidade frente a uma doença, ao mesmo tempo a HQ demonstra como poucas a força de uma boa história pode nos levar: cruzar a ponte que nos distancia do outro e de sua vivência. Contradizendo o próprio Dylan ao maldizer o ditado de que nenhum homem é uma ilha.
Com isso, todo o burburinho e discussões que a história possa levantar são mais que válidas, são necessárias. Deste modo, se você não sabe por onde começar a ler a obra máxima de Tiziano Sclavi, talvez a melhor porta de entrada seja pelos domínios de Mater Morbi.
Nota: 4