Alguns dias atrás estava lendo Perramus, clássico de Juan Sasturain e Alberto Breccia, publicado pela editora Figura. Muito enamorado, acabei ganhando de presente de aniversário da esposa, e mesmo sabendo das dimensões da edição, o peso me surpreendeu. Talvez uma das edições mais pesadas em que já pus as mãos e que com o tempo acabou se mostrando um desafio para ler.
Não tenho um suporte de leitura e nunca achei que fosse precisar, porém à medida em que fui avançando na minha leitura do bendito fui percebendo que não encontrava uma posição. Segurá-lo com as duas mãos não era uma opção, então tive que agarrá-lo com uma mão e conforme ia cansando, tinha que apoiar essa mão na mesa. O que, por sua vez, acabou gerando em uma das sessões de leitura um leve inchaço na mão direita.
Não que a leitura tenha ficado prejudicada, mas que o processo ficou mais custoso, isso com certeza. Afinal de contas, o ato de manuseá-lo era algo que exigia um esforço a mais dos braços, o que convenhamos, não é nada confortável.
Coincidentemente, alguns dias depois do término da leitura de Perramus, me deparei com esse trecho do Umberto Eco em A memória vegetal e outros escritos sobre bibliofilia:
O olho lê e o corpo inteiro entra em ação. Ler significa também encontrar uma posição apropriada, é um ato que envolve o pescoço, a coluna vertebral, os glúteos. […] Ler tem a ver com a nossa fisiologia. (ECO, Umberto. A memória vegetal e outros escritos sobre bibliofilia, pág. 30, 2010.)
Após esse trecho, o escritor italiano segue falando sobre um trecho de Ulisses de James Joyce, onde descreve o personagem Leopold Bloom defecando e aproveitando o momento para ler. Uma cena bastante comum para aqueles que nasceram antes do boom dos smartphones. Algo tão habitual, que era normal ter uma cesta com revistas e quadrinhos num cantinho ao alcance das mãos.
Eco também diz:
O ritmo da leitura acompanha o do corpo, o ritmo do corpo acompanha o da leitura. Não se lê apenas com o cérebro, lê se com o corpo inteiro, e por isso sobre um livro nós choramos, e rimos, e lendo um livro de terror se nos eriçam os cabelos na cabeça. (ECO, Umberto. A memória vegetal e outros escritos sobre bibliofilia, pág. 33, 2010.)
Esses trechos me levaram de volta à minha experiência lendo Perramus e outros quadrinhos mais robustos como Do Inferno, de Alan Moore e Eddie Campbell, publicado pela editora Veneta e tantos outros publicados pela Panini no formato absoluto. Isso sem falar nos gigantescos omnibus que vem ganhando cada vez mais destaque no mercado, mas que, além de não me convencerem, sempre me pareceram de difícil manuseio e até mesmo um perigo à saúde.
De tal forma, que o tradutor e jornalista Érico Assis, em sua coluna Enquanto isso…, nos conta o caso do afortunado leitor que se lesionou ao pegar de mau jeito um omnibus: um estiramento no músculo do antebraço. Segundo o médico que lhe atendeu, o jeito certo a se pegar um volume tão pesado é sempre em ângulo reto e com as duas mãos.
A escolha por materiais cada vez maiores pelas editoras brasileiras é explicada por diferentes fatores. Alguns apontam a gourmetização dos quadrinhos, outros, decisões comerciais para viabilizar este ou aquele título, uns dizem que é até mais barato comprar um omnibus do que acompanhar mensais ou títulos em capa cartão. O que importa é que eles são via de regra no momento em que escrevo este texto (março de 2024).
Ainda assim, o que quero discutir aqui com vocês é advogar em prol das HQs de dimensões menores e mais acessíveis. O argumento que usarei não será de viés econômico ou colecionista, mas tátil.
A leitura, o livro e o ambiente
Para começar vou propor um pequeno exercício mental. Quero que você se lembre de um dia bastante quente, aquele dia em que o ventilador já não dá conta e boceja um ar tão quente quanto o próprio ambiente. As roupas grudam no corpo, o suor escorre pela coluna e para se distrair você pega um quadrinho ou livro.
Você se senta numa cadeira. O estofado depois de algum tempo incomoda as coxas e as nádegas. O sofá parece ser uma opção mais confortável e você arrasta o ventilador e se deita com o vento à sua frente. Passados alguns minutos, suas costas se tornam um com o material e a transpiração molha a sua nuca e o seu pescoço. A concentração vacila, é impossível continuar a leitura e você desiste. O quadrinho volta à pilha de leitura e você vai em busca de alguma salvação; que no caso pode ser uma bebida gelada, sorvete ou até mesmo um terceiro banho no dia.
Temperatura, sons e luminosidade são alguns dos fatores que podem interferir no processo de leitura. Não à toa, buscamos sempre um local adequado para nos acomodarmos quando vamos ler. Do outro lado da moeda, a própria materialidade do livro ou da HQ também pode atrapalhar o ato.
Vamos pensar na seguinte situação. Por descuido, você derramou café (daqueles bem açucarados) parcialmente em um livro. A capa e algumas das folhas já foram atingidas e por mais que corra para retirá-lo de cima daquela poça, o dano já foi feito. Munido de papel toalha, você trabalha para retirar o excesso e depois utiliza o secador de cabelos para secar as folhas e a capa (não sei se esse é o procedimento correto, desculpa pessoal da conservação e restauração).
Após um tempo, você tenta retomar a leitura. Pega o livro com uma das mãos e percebe que o melado do café permanece na capa e nas folhas. A sensação é estranha, os dedos grudam no papel e o cheiro enjoativo de café sobe com o passar das folhas. Com o tempo, o toque com a capa impregnada de açúcar se torna insuportável e, consequentemente, a leitura é interrompida.
Agora vamos ao cenário. Sábado à tarde e você decide, enfim, atacar aquela edição especial. Capa dura, mil e oitocentas páginas, dois quilos e meio, toda a fase daquele seu roteirista preferido e nunca antes publicado integralmente por aqui. A empolgação está lá em cima, você se senta no sofá. Segura com as duas mãos, mas como passar as páginas?
Você opta então por ler a mesa e percebe que a coisa fica descompensada e é necessário um calço para sustentar a capa, principalmente, à medida que o peso aumenta. Ler deitado? O corpo não encontra um lugar. Você volta a procurar um jeito, mas com o tempo, o peso e a dificuldade de manusear começam a jogar contra o ritmo de leitura. É hora de dar uma pausa.
O livro e sua forma
Apesar de não pensarmos tanto na corporeidade do ato da leitura, os exemplos acima são apenas uma fração mínima para ilustrar como o corpo se faz presente durante esta ação.
Embora o tema não seja algo costumeiro no pensamento de nós leitores, ele o é por parte das editoras. São vários os materiais utilizados para deixar o livro e a leitura mais aprazível. O queridinho papel Pólen Soft 80gr não chegou aonde chegou na preferência dos leitores por mero capricho. Aliás, engana-se quem acha que o projeto gráfico de um livro não possa interferir em sua leitura e por isso, todo livro deveria ser pensado para proporcionar a melhor experiência possível.
Claro que isso não é uma norma e são vários os livros que saem capengas, xoxos e tristes em direção às livrarias ou e-commerces da vida. Contudo, há algo em comum na maior parte dos livros: seu formato e forma. Ajustado por séculos, o tamanho ideal de um livro é aquele que pode ser tomado pela mão e levado a certa distância dos olhos sem muito esforço. Sendo os de maiores proporções destinados a decoração ou edições especiais.
A ideia sempre foi a de que os livros pudessem ser facilmente manuseados e carregados por aqui e acolá. Em outras palavras: populares. Mais ainda quando pensamos nas edições de bolso e:
“seu dócil tamanho e sua vontade nômade. […] Discreto, leve, de fácil manuseio, modesto, o livro de bolso é, de toda biblioteca, o que mais se dobra à vontade do leitor. Por ser portátil, não exige ser lido num determinado local, como os mastodônticos volumes de uma enciclopédia; por ser barato, não provoca no leitor que quer garatujar em suas margens o sentimento de lèse-majesté que causam seus irmãos mais aristocráticos de capa dura; por ser pequeno, não desdenha a bolsa nem, obviamente, o bolso, e se deixa levar para a cama como o mais dócil namorado.” (MANGUEL, Alberto)
Livros e quadrinhos
Numa transição para o nosso universo dos quadrinhos, é possível dizer que os polêmicos formatinhos seriam nossas edições de bolso; o formato sagas (e tantos outros de capa cartão), assim como os mangás da Panini seriam os nossos livros de brochura; já as edições absolutas e as graphic novels correspondem aos aristocráticos livros de capa dura; enquanto que os omnibus, edições de artista e outros mais luxuosos representam aqueles destinados a serem degustados com os olhos e não, necessariamente, com as pontas dos dedos.
Apesar da escalada de qualidade no material utilizado nas publicações, a mobilidade do material é inversamente proporcional. O que nos leva de volta ao ponto inicial deste texto.
Ler deveria ser uma atividade acessível em múltiplos sentidos. Seja em valores praticados, variabilidade e facilidade de manuseio. Aliás, me diga se não é mais fácil carregar na mochila um formatinho ou um capa cartão do que alguns dos trambolhos de mais de mil páginas que pensam dois ou mais quilos que vem sendo publicados.
Nada contra os omnibus da vida, mas não deveríamos estar presos a suportes de leitura, como monges enclausurados, mas atacando de assalto o espaço público. Pois, atire a primeira pedra quem não se sentiu mal por ter que interromper a sua leitura, por não ter condições de carregar o seu quadrinho. Isso sem falar nas inúmeras paixonites (seja pela pessoa que está lendo, seja pelo quadrinho/livro em si) geradas por vislumbres de capas e páginas no transporte público.
Folhear as páginas de um quadrinho não deveriam causar uma luxação ou um estiramento muscular. Semelhantemente não deveria estar se tornando um nicho com cada vez menos leitores e investir em modelos/formatos mais acessíveis não deveria ser visto com maus olhos.
A volta dos formatinhos
Entre novembro de 2023 e março de 2024 vimos a Image Comics com Saga e a DC Comics com seu compact comics apostarem em quadrinhos consagrados para abrir um novo filão. A configuração escolhida para aproximar estes títulos de um novo público leitor foi justamente o dos nossos antigos e famigerados formatinhos: quadrinhos menores, brochura e preços mais em conta.
Um fator que pode ter servido de base para a escolha das editoras, é a aproximação do formato com a aparência dos volumes tankoubon dos mangás. O que poderia ajudar os quadrinhos a se aproximarem do público leitor de quadrinhos japoneses, ao mesmo tempo em que oferece um ponto de mangá, mas não só.
Desconfio que essa nova empreitada editorial, seja não só uma tentativa de se baratear produção, mas também a de se criar um outro tipo de experiência de leitura. Uma que esteja afastada dos cacoetes estéticos do colecionismo como capa dura, lombadas quadradas e outros exageros. Uma na qual os quadrinhos possam voltar a serem lidos deitados, sentados, no transporte público, em pé, de banda, na rede ou num banquinho. Algo reforçado pelo próprio anúncio da DC que você pode ver aqui.
O meu único receio é que essas novas edições tomem o mesmo caminho que as refinadas edições de bolso do livreiro e tipógrafo Aldo Manucio que ao invés de alcançarem as mãos de populares, caíram no gosto de aristocratas que os compraram, não para lê-los, mas para adornar as prateleiras de suas estantes.
Contudo, o que se tem visto após o seu lançamento por aqui é que elas realmente ocupem esse espaço de quadrinho “popular” (repare nas aspas, por favor), já que as edições definitivas da Panini estão com preços cada vez mais estratosféricos. E se você ainda não viu nenhuma das HQs publicadas no formato, recomendo que assista o vídeo do canal 2quadrinhos para ver como ficou Watchmen.
Em nome do conforto
Claro que toda discussão sobre quadrinhos, livros e o nosso prazer da leitura tende a passar pelo viés econômico. Não foram poucos os profissionais do mercado editorial que já apontaram que a diferença entre se produzir uma HQ em capa cartão de uma HQ em capa dura é pequena; importando mesmo é a quantidade do número de impressões. Tanto que, para mim, o caráter colecionista que assola o mercado nacional é um Ouroboros, sendo tanto o causador do problema quanto a sua própria resposta.
Porém, e para além do preço, um dos grandes desafios não é tornar uma HQ em um objeto bonito e desejável, mas também torná-la um item do dia a dia. Algo que não seja custoso de manusear, que seja fácil de levar por aí. Ok, temos alguns e-readers no mercado e tablets que facilitam, mas o ponto aqui é são os quadrinhos físicos.
Há outro ponto, existe algo na materialidade do quadrinho, uma experiência que somente o papel é capaz de produzir, mas que é difícil de explicar. Para que isso não se perca é necessário que voltemos a pensar na corporeidade da leitura. Portanto é preciso ponderar: qual é o formato ideal para se ler um quadrinho? E o mais importante, qual é o formato ideal para uma leitura confortável?
Tenho por cá as minhas preferências e sigo encontrando por aqui e ali quadrinhos nessas configurações, mas a tendência que observo é inversa e a ideia de se comprar um suporte para leitura ou intensificar meus treinos com halteres vai ganhando força.