Ficha Técnica
Um Pequeno Assassinato
Autores: Alan Moore (roteiro), Oscar Zárate (arte)
Tradução: Marília Toledo
Preço: R$ 54,90
Editora: Pipoca & Nanquim
Publicação: Novembro/2017
Número de páginas: 116
Formato: 20,5 x 27,5 cm) Colorido/ Capa dura
Gênero: Drama
Sinopse: Um bem-sucedido publicitário acaba de aceitar o trabalho de sua vida: uma campanha na antiga União Soviética para uma marca de refrigerantes norte-americanos. Mas tudo começa a dar errado quando ele passa a ser perseguido por uma estranha criança, forçando-o a voltar e encarar o seu passado.
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Entrada
Crescer é um processo complicado. Muitos dos nossos sonhos infantis são substituídos por pensamentos mais pragmáticos à medida que os anos vão passando. Afinal os boletos não esperam e na pressa de pagá-los sacrificamos muito daquilo que somos. De tal forma que podemos nos tornar irreconhecíveis a nossos antigos eus. Mas e se a criança que você foi não se orgulhasse daquilo que você se tornou? E se ela voltasse para cobrar todos os seus crimes? Um pequeno assassinato é sobre isso.
Publicada originalmente em 1991, pela editora britânica VG Graphics, a HQ é uma daquelas obras-primas escondidas do nosso querido mago inglês. O motivo para isso, além do ter demorado 26 anos para ser publicado por aqui, talvez tenha haver com o próprio período vivido por Alan Moore.
Segundo o próprio Moore, os anos que sucederam a sua saída da DC Comics, no final dos anos 80, e sua chegada a Image Comics, no meio da década de 90, como seus “anos selvagens”. Envolvido com a sua própria editora, a Mad Love, e em projetos mais longos e independentes como AARGH!, Big Numbers e Do Inferno, o roteirista tinha sumido aos olhos do grande público mainstream dos quadrinhos. E é em meio a toda essa efervescência de temas não muito usuais as grandes editoras que o roteirista inglês e o quadrinista e ilustrador argentino Oscar Zárate se conheceram.
Os meandros deste primeiro encontro se perderam, como ficamos sabendo na entrevista que fecha a edição da Pipoca & Nanquim, contudo o resultado do trabalho é um ponto único na bibliografia do roteirista cuja importância foi reconhecida três anos depois ao ganhar o Eisner de Melhor Álbum Gráfico em 1994.
Enredo e simbologia
Vários são os motivos pelos quais Um pequeno assassinato ocupa um lugar distinto entre os trabalhos de Moore. Contudo, o principal deles seja o do argumento inicial não ter partido do inglês. É Zárate que propõe as bases da HQ como vemos na entrevista que fecha a edição nacional:
O ritmo da narrativa é meu. Essa foi minha primeira proposta a Alan: Eu cutuco as suas costas, você se vira e não há ninguém ali. Eu te cutuco de novo, você olha pra baixo e vê um menino: ‘Como vai? Quer alguma coisa?’ Ele fala: ‘Não’. Até que você diz, ‘quem é você?’, e ele responde, ‘Sou você quando tinha dez anos de idade. E vim aqui te matar’. ‘Por quê?’ ‘Porque você me traiu’.
Além disso, Zárate fez várias outras sugestões a Moore, que conseguiu incorporá-las ao roteiro de forma bastante orgânica e de tal modo que várias camadas foram acrescentadas. Como o próprio argentino destaca:
“Mas o que mais importa para mim são as sutilezas, os momentos. É por isso que gosto do tipo de análise que ele fez. Gosto por ele ter entendido, não por ter concordado comigo.”
E o que mais impressiona é como este clichê é algo menor, quase como uma nota de rodapé no enredo. Tanto que a identidade do garoto que atormenta o protagonista é algo facilmente identificado por quem está lendo. O importante mesmo na leitura são os elementos e simbologias ali presentes e que transformam a HQ em um verdadeiro caleidoscópio.
Símbolos por toda parte
Nada em Um pequeno assassinato é por acaso e o quadrinho é um belo exemplo da filosofia de Moore quanto a quantidade de informações que podem ser inseridas em uma HQ. Desde o livro Lolita lido pelo protagonista ou os trechos de uma música da banda Talking Heads, os meios de locomoção usados por Timothy Hole e até mesmo a cidade natal são uma fração das referências trabalhadas por Moore ficando a cargo de quem lê se debruçar em todos esses detalhes.
Não à toa é possível ler a HQ de várias formas, sendo algumas possibilidades:
- Um tratado sobre a desilusão de toda uma geração ao final da década de 80 e início da década de 90;
- como uma jornada pelos inúmeros assassinatos que cometemos para chegar a vida adulta;
- E até mesmo como uma HQ autobiográfica, mesmo que Moore insista em dizer que não.
Mas talvez as duas grandes alusões que devemos estar atentos são a sombra de Margaret Thatcher, ex-primeira-ministra do Reino Unido, e a coleção de ovos de pássaros que acompanharam o protagonista por toda a sua adolescência e boa parte da vida adulta.
Tatcher pode ser vista em todo o pragmatismo da cultura yuppie na qual Timothy está inserido. Mais conservadores que a geração de seus pais hippies, os yuppies abandonaram os ideais de lutas sociais e revolução como uma ressaca amarga e focaram em pautas mais individuais de crescimento e prosperidade. Reparem nas sequências e informações quanto a adolescência de Timothy e sua lenta transformação em direção ao zeitgeist do fim dos anos 80.
O nascimento deste novo mundo desencantado também pode ser relacionado a coleção de ovos do protagonista e pensar no quadro Criança geopolítica observando o nascimento do homem novo do pintor Salvador Dalí acaba sendo inevitável.
Timothy Hole
Quanto a Timothy, o protagonista e narrador de Um pequeno assassinato, podemos lê-lo como um herdeiro espiritual do personagem sem nome do livro Notas do Subterrâneo de Fiódor Dostoiévski. Ambos homens medíocres, incapazes de terem empatia com aqueles que os cercam e totalmente imersos em si mesmos.
Por consequência, a vida, o casamento e a carreira de Timothy são marcados por momentos violentos. Muitos dos quais o próprio publicitário não percebe, como a própria peça publicitária que o colocou no radar de uma grande empresa de publicidade, algo que na HQ se transmuta na miopia do personagem. Atentem-se as passagens nas quais ele está usando os seus óculos e quando não está usando e vocês irão perceber algo bem interessante.
As cores e a arte de Oscar Zárate
Se Um pequeno assassinato tem um roteiro inspirado o mago de Northampton, o argentino Oscar Zárate não fica para trás e nos entrega uma arte esplendorosa. Uma aquarela que alterna entre cores fortes e vibrantes no dia-a-dia de Timothy, cores opacas em flashbacks e até mesmo o uso de preto e branco em momentos mais oníricos.
E não é somente as cores que mudam nesses momentos, os traços do argentino também se modificam as diferentes sequências da HQ. Indo de uma arte impressionista, que perpassa a maior parte das páginas, a desenhos borrados e hachuras, Zárate mostra toda a sua versatilidade como desenhista. Mas também como narrador ao usar cores, luzes e sombras, assim como outros elementos para guiar os nossos olhos dentro das páginas.
Chamo atenção para a sequência da briga no bar, onde à medida que a confusão vai aumentando, Zárate usa o vermelho para nos orientar quanto à localização de Timothy e ordem dos eventos. E também para quando as cores são utilizadas para a separação de planos, criação de contraste e atuando como um forte elemento narrativo.
Conclusão
Alan Moore é um gênio dos quadrinhos e isso já foi provado por inúmeras de suas obras mais famosas como Watchmen, V de Vingança ou Promethea, para ficar em alguns exemplos. Contudo, Um pequeno assassinato é uma daquelas obras pouco faladas, mas que deveria estar em todos os top cinco do roteirista inglês e que definitivamente deveria entrar na sua lista de leitura.
Nota: 5 de 5